Descrição de chapéu The New York Times

Rejeitados por relação com coronavírus, morcegos têm sons convertidos em música

Álbum 'Ultrasonic' transforma ondas de alta frequência emitidas pelo animal em canção assustadora

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Grayson Haver Currin
The New York Times

Numa noite fria no final de maio, Stuart Hyatt saiu de sua casa em Indianápolis carregando uma caixinha preta. Assim que pôs os pés para fora, a caixa começou a emitir chiados e estalos.

“Está ouvindo isso?”, perguntou Hyatt, sorrindo durante uma ligação no FaceTime. “Nunca os vi voando tão baixo.”

Os morcegos de seu bairro haviam chegado, buscando sua refeição noturna de insetos. E, como de hábito, Hyatt estava ali para ouvir e se deslumbrar. A pequena caixa preta permite que se ouça o tagarelar geralmente inaudível dos morcegos, mesmo por meio de um celular.

Recentemente os morcegos vêm sofrendo mais uma crise de imagem. Considerados portadores de coronavírus, eles estariam sendo mortos na Índia e estão sendo vilipendiados em quase todo o resto do mundo, vistos como responsáveis pela pandemia.

Nos últimos dois anos, porém, morcegos vêm sendo a principal inspiração musical de Stuart Hyatt. Ele gravou os sons emitidos pelos animais --em frequência tão alta que humanos geralmente não conseguem ouvir--, tornou audíveis esses sons e então enviou o material a uma equipe de improvisadores e compositores como Kelly Moran, que cria obras prismáticas para piano preparado, e Jefre Cantu-Ledesma, mestre da música drone.

“Num primeiro momento, as texturas e os tons pareciam caóticos”, comentou um dos colaboradores, Matthew Cooper, conhecido como Eluvium em suas gravações. “Mas encontramos pedacinhos de melodia e ritmo carregados de harmonia.”

O resultado disso é “Ultrasonics”, o oitavo álbum de Hyatt na série "Field Works". As 14 faixas evocam o mistério das saídas noturnas dos morcegos, de sua hibernação e da calamidade existencial do colapso de seu habitat.

“Os sons emitidos pelos morcegos são como cantos de aves, só que em um registro que as pessoas não conseguem ouvir”, disse Hyatt. “Eu quis expor a musicalidade de suas vozes.”

Segundo Hyatt, que tem 45 anos e vive em Indianápolis, “Ultrasonic” representa o momento culminante de toda uma vida marcada pela obsessão pelo som. Sua primeira recordação é a sensação de erguer a cabeça sobre a superfície da água em uma piscina e ouvir o mundo do outro lado da superfície. Quando ele tinha três anos, um amigo da família sugeriu um remédio para sua hiperatividade –um pequeno violino e a disciplina do método Suzuki.

Nos sete anos seguintes o violino foi seu bálsamo, redirecionando sua energia e aguçando seu foco. Mas quando Hyatt tinha dez anos, justamente quando seu professor começou a lhe explicar sobre notação musical, ele decidiu que já sabia o suficiente.

“Talvez o violino já tivesse cumprido seu papel”, ele comentou. “Eu senti que já tinha feito o suficiente com ele.”

Seu entusiasmo pelo som, contudo, não se esgotara. Hyatt acabou aprendendo a tocar contrabaixo, teclado e bateria. Mas teve sua verdadeira revelação quando um amigo lhe emprestou um gravador de quatro canais. Ele passou a se gravar cantando a mesma melodia em diferentes registros. E começou a gravar sons domésticos –por exemplo a água saindo de uma torneira e o barulho produzido na tubulação.

Stuart Hyatt, à esquerda, com Erica Penna e Nathan Ferreira, gravando os sons de alta frequência dos morcegos para o álbum "Ultrasonic", em 5 de agosto de 2019
Stuart Hyatt, à esquerda, com Erica Penna e Nathan Ferreira, gravando os sons de alta frequência dos morcegos para o álbum "Ultrasonic", em 5 de agosto de 2019 - Anna Powell Denton/The New York Times

Em pouco tempo Hyatt percebeu que não estava interessado em ouvir sua própria voz –queria imortalizar os objetos que o cercavam. Enquanto se formava em arte, arquitetura e escultura, aproveitou alguns trabalhos da faculdade para documentar eventos como uma cerimônia de cientologia, gravada por baixo do pano, e uma caminhada de 34 quilômetros por uma rodovia movimentada de Indianápolis. Passou um verão em uma penitenciária, gravando dez álbuns de canções dos detentos. “The Clouds” foi uma compilação de corais de gospel rurais do Alabama.

Seu trabalho avançou quando Hyatt chamou alguns de seus músicos favoritos para criarem música nova a partir dessas gravações em campo. Ele utilizou as medidas de uma caverna no Texas para criar obras hipnotizantes para pedal steel e então convidou artistas eletrônicos para remixar.

Suas gravações da Feira Estatual do Indiana, acompanhadas por um piano pensativo e harpa tensa, formam uma meditação marcante sobre a reforma da imigração e a comunidade imigrante.

“Batizei esse trabalho de 'Field Works'”, ele explicou, “porque vejo a rua como meu campo e o estúdio como meu laboratório".

Hyatt nunca havia pensado em animais como matéria-prima até setembro de 2018, quando acompanhou seu filho Oscar, de dez anos, e 40 colegas de escola dele numa viagem de estudos em campo para o Parque Nacional Great Smoky Mountains.

Na última noite que o grupo passou ali, eles fizeram um passeio com guia para ver os morcegos do parque. Os garotos carregavam gravadores eletrônicos desajeitados. Quando os morcegos emergiram para se alimentar, as máquinas traduziram os sons inaudíveis de sua ecolocalização em sinais eletrônicos audíveis.

“Eu tinha passado dez anos pensando em documentar os sons do nosso mundo”, contou Hyatt. “Mas, quando liguei aquele aparelho e ouvi aqueles morcegos, foi como ouvir vozes de uma outra dimensão, de um universo paralelo. Os garotos ficaram estarrecidos. Falei: ‘Este vai ser meu próximo projeto’.”

Stuart Hyatt, no centro, com Jeremy Radway e Reed Crawford, gravando os sons de alta frequência dos morcegos para o álbum "Ultrasonic", perto de Indianapolis, em 12 de agosto de 2019
Stuart Hyatt, no centro, com Jeremy Radway e Reed Crawford, gravando os sons de alta frequência dos morcegos para o álbum "Ultrasonic", perto de Indianapolis, em 12 de agosto de 2019 - Anna Powell Denton/The New York Times

Eles estavam ouvindo o morcego do Indiana, uma espécie ameaçada há meio século. Esses morcegos emitem chamados complexos de frequência às vezes cinco vezes mais alta do que o que os humanos conseguem detectar. Os morcegos usam esses chamados para rastrear insetos, desviar de obstáculos e se comunicar entre eles. Os sons rebatem contra o mundo em volta, como sonares.

Os morcegos dessa espécie são tão pequenos que pesam pouco mais que uma moeda de US$ 0,25. Eles vêm passando por inúmeras provações. As cavernas e minas onde passam o inverno foram danificadas, destruídas ou convertidas em atrações turísticas. Os pantanais e florestas que eles precisam para se reproduzir no verão também foram afetados.

Um pouco mais de uma década atrás, cientistas pensaram que um aumento populacional poderia em breve tirar o morcego do Indiana da lista de espécies ameaçadas. Mas eles voltaram a ser dizimados, desta vez por uma infecção fúngica conhecida como síndrome do nariz branco. Hoje há apenas 500 mil morcegos da espécie espalhados por 16 estados americanos. Boa parte dessa população continua em risco.

Hyatt encontrou os morcegos que usou em suas gravações a 40 minutos ao sul de sua casa, perto do Aeroporto Internacional de Indianápolis, em áreas pantanosas e arborizadas preservadas em parte para ser habitat dos morcegos.

Ao longo de três meses no verão passado, ele e uma equipe pequena foram ao local quase todas as noites, com microfones presos às suas mochilas e a mastros. Eles não conseguiam ouvir os morcegos, mas enxergavam os sinais que os animais faziam nas telas de seus aparelhos. No dia seguinte, Hyatt processava os arquivos e revelava os sons –chilreados inesperadamente doces, sons suaves de sugar, assobios ternos, estalos bruscos.

“Era quase como se tocar o som do céu”, disse Hyatt. “Havia coisas espantosas.”

Stuart Hyatt, à esquerda, e Tiana Jimenez-Srisook processam gravações de campo no estúdio em Bloomington, Indiana, 10 de setembro de 2019
Stuart Hyatt, à esquerda, e Tiana Jimenez-Srisook processam gravações de campo no estúdio em Bloomington, Indiana, 10 de setembro de 2019 - Anna Powell Denton/ The New York Times

Em “A Place Both Wonderful and Strange”, uma das faixas de “Ultrasonic”, a guitarrista experimental Noveller, de Los Angeles, junta um som wagneriano poderoso com um pulsar gótico, como se o ouvinte estivesse acompanhando os morcegos numa investida noturna contra Gotham.

Em “Silver Secrets”, a harpista Mary Lattimore toca com um trecho computadorizado repetido dos morcegos, sugerindo um balé delicado. E em “Dusk Tempi”, Eluvium entremeia seu violino com complexas camadas de chamados de morcegos, esticados e empilhados para criar a ilusão dos céus radiantes do crepúsculo.

Hyatt já está trabalhando sobre suas próximas duas bibliotecas sonoras. Ele quase concluiu já um grande álbum criado a partir de uma série de poemas em árabe e inglês sobre cedros, lidos e cantados com instrumentais hipnóticos e acompanhados por um gibi.

Recentemente, ele começou a usar dados e tons de 280 monitores de atividade sísmica no estado americano do Alasca para mapear as placas tectônicas debaixo da América do Norte. Como o resto de sua obra, esses trabalhos são tentativas de encontrar sentido através da exploração das vozes de outras pessoas e coisas.

“Sinto um anseio real de conexão mais profunda com o mundo”, disse Hyatt. “Abordo o som e a música com um anseio espiritual por ouvir a coisa por inteiro –apesar de não saber o que é a coisa por inteiro.”

Tradução de Clara Allain

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