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'The Great' lidera onda que retrata mulheres históricas como millennials fofas na TV

Produção estreia no país e exibe imperatriz russa Catarina com roupagem pop na pele de Elle Fanning

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São Paulo

A primeira transa da vida daquela que viria a ser Catarina, a Grande, é com Pedro, o jovem imperador da Rússia com quem ela acabou de se casar. E é desconfortável para caramba.

Deitada imóvel na cama com as pernas abertas sob o vestido, ela segura no rosto uma expressão de dor e estranhamento enquanto ele mexe os quadris, de pé, e conversa o tempo todo com um amigo da corte sobre a caça de patos.

“Maravilhoso”, diz Pedro, fechando as calças após terminar. “Tomara que a minha semente tenha vingado.” Então sai para beber com o amigo enquanto ela fica inerte. No dia seguinte, a criada pergunta a Catarina, cética, se a noite foi como a jovem tinha sonhado. “Para ser sincera, foi breve.” “Às vezes isso é um alívio”, responde a empregada.

Está dado o tom da série “The Great”, que chega agora ao Brasil pela plataforma de streaming Starzplay —depois de estrear nos Estados Unidos no mês passado— e romanceia a história da mais longeva imperatriz russa impregnada de tons de feminismo e de ironia.

Criada pelo roteirista Tony McNamara, que lavrou terreno parecido no oscarizado filme “A Favorita”, a produção quer menos se fiar tintim por tintim à vida real dos governantes, ao estilo mão de ferro de “The Crown”, e mais atualizar num conto moderno a lenda de Catarina.

Está longe de ser a primeira série a sacrificar os fatos e a história em prol da ficção, mas aqui há um passo além, assumido já no letreiro principal, no qual há um asterisco apontando, divertido, que “The Great” é uma “história ocasionalmente verdadeira”.

Não que o roteiro pareça ter sido escrito em Marte. Está lá o casamento arranjado entre a garota nascida na Prússia, com a mais moderna educação europeia para aquela metade do século 18, e o herdeiro da linha imperial russa.

Diferente do que é mostrado na série, porém, Pedro não era imperador quando eles se casaram. Levaram mais 17 anos até que ele chegasse ao trono, posto que acabaria ocupando por poucos meses.

Fora isso, a sensibilidade da série é a de hoje. Não há discursos empolados nem palavras difíceis, os personagens a cada dois instantes falam “fuck off”, ou ou vá se foder, e a trama não carrega o peso paciente dos acontecimentos históricos.

A produção prefere mostrar uma Catarina que rapidamente se empodera (para usar uma palavra da moda), parte para disputar o jogo dos tronos com a nobreza local e busca instaurar reformas que tirariam a Rússia do domínio atrasado do governante —e marido— que ela odeia.

A narrativa, aliás, deixa evidente que está olhando do presente para trás, já que abusa de diálogos que só poderiam ter sido escritos hoje. “Aqui está meu plano”, a imperatriz diz a um cúmplice a certa altura. “Você e eu vamos criar uma filosofia e um projeto para o meu regime. Quando nós criarmos uma Rússia vibrante e forte, viva com ideias humanas e progressistas, as pessoas vão viver com dignidade e propósito.”

Enquanto sua mulher ostenta essa visão avançada de futuro, Pedro não passa do mais bem acabado retrato do "boy lixo". Arrogante, violento, inepto e mimado —numa cena recorrente, o rapaz faz piada sem graça e, ao gritar à trupe de comparsas um “ei, eu acabei de fazer essa piada!”, provoca uma onda de risadas forçadas—, o imperador vivido por Nicholas Hoult, de “Skins”, é o vilão ideal para uma trama histórica embebida do feminismo de hoje.

Elle Fanning, que estrela e produz a série, ajuda a situar o espectador na sua proposta transgressora, já que ocupou o centro de fábulas progressistas como “Mulheres do Século 20” e o infantil “Malévola”, e de tramas futuristas, caso de “Demônio de Neon” e “Como Falar com Garotas em Festas”.

Mas o que mais grita nesse caso é sua colaboração frutífera com Sofia Coppola, com quem fez “Um Lugar Qualquer” e “O Estranho que Nós Amamos” —obra que também atualiza uma narrativa trocando seu tom machista por uma sensibilidade mais atenta à visão feminina.

Coppola, aliás, é autora do mais célebre filme a usar estética hipster e música jovem para ficcionalizar uma figura histórica, dessa vez na pele de Kirsten Dunst. Em “Maria Antonieta”, de 2006, outra monarca infeliz é elevada a ícone pop.

“The Great” não é a única herdeira dessa linhagem. No ano passado, a Apple TV+ lançou “Dickinson”, série que adapta a vida da poeta americana do século 19 com uma estética pós-MeToo ainda mais acentuada.

Vivida por Hailee Steinfeld —que equilibra uma indicação ao Oscar por “Bravura Indômita”, dos irmãos Coen, e uma carreira de cantora pop adolescente—, Emily Dickinson abusa de gírias e comportamento millennial, se envolve nem uma paixão tórrida com outra garota e anda por aí sob a trilha de Billie Eilish.

Tudo para introjetar a ideia de que a poeta, hoje renomada, um dia foi uma jovem exatamente igual a você, com as mesmas aspirações, dúvidas e rebeldia. Sua poesia, assim, ganha novos contornos, permitindo aos jovens ver que esse gênero que não raro afugenta não é nenhum bicho-de-sete-cabeças.

Por exemplo, durante a escrita de um poema que se inicia com o verso “como não pude parar para a morte”, a adolescente Emily passeia, dentro de uma carruagem preta, com uma Morte interpretada pelo rapper Wiz Khalifa. A diversidade no elenco, aliás, é outro ponto que une as duas séries de época e conversa com demandas atuais —vários dos nobres russos de “The Great”, por exemplo, não são brancos.

Não é coincidência que “The Great” tenha nos créditos principais de roteiro, além de Tony McNamara, duas escritoras, Vanessa Alexander e Gretel Vella. Também não surpreende que “Dickinson” seja criação pioneira de Alena Smith, roteirista vinda de “The Newsroom” e “The Affair”.

Outra autora, Greta Gerwig, fez questão de inserir novas cenas na sua reimaginação de “Adoráveis Mulheres” —livro novecentista de Louisa May Alcott que narrava a dura formação de jovens garotas—, explicitando que seu filme não era uma história sobre séculos atrás. Era sobre hoje.

É um clichê gasto falar que certas mulheres estavam à frente de seu tempo. O audiovisual tenta agora levar nosso tempo até elas.

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