Descrição de chapéu The New York Times

Chamar Joseph Boulogne de 'Mozart negro' é inferiorizar sua história e importância

Apelido submete o músico a um padrão branco arbitrário e apaga sua relevância na música clássica ocidental

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Marcos Balter
The New York Times

A Searchlight Pictures anunciou em junho planos para um filme sobre Joseph Boulogne, compositor do século 18 também conhecido como o Chevalier de Saint-Georges.

Quando o anúncio foi feito, as manchetes ressuscitaram outro apelido dado a Boulogne: “Mozart negro”. Presume-se que a intenção tenha sido elogiosa, mas esse apagar do nome de Boulogne não apenas o submete a um padrão branco arbitrário como amesquinha o lugar realmente singular que ele ocupa na história da música clássica ocidental.

Poucos músicos levaram uma vida tão fascinante e multifacetada quanto a de Boulogne. Mas narrar sua história é um exercício de adivinhação. O que é sabido concretamente é pouco documentado ou, ainda, sujeito a documentação contraditória, quando não baseado puramente em relatos. Para agravar a situação, um romance escrito no século 19 por Roger de Beauvoir, “Le Chevalier de Saint-Georges”, entremeou fatos e ficção tão perfeitamente que muitos de seus detalhes inverídicos foram pouco a pouco encontrando lugar na biografia presumida de Boulogne.

O que é sabido é que Boulogne nasceu entre 1739 e 1749 na ilha de Basse-Terre, a metade ocidental do arquipélago de Guadalupe, filho ilegítimo de um rico fazendeiro francês e uma escrava guadalupense de origem africana. Quando tinha cerca de dez anos, ele e sua mãe seguiram seu pai e a família legítima dele de volta à França, onde Boulogne foi matriculado em escolas de elite e recebeu aulas particulares de música e esgrima.

Ele ficou famoso inicialmente como campeão de esgrima, o discípulo mais conhecido do renomado mestre La Boëssière. Está exposta até hoje no Palácio de Buckingham uma pintura mostrando uma luta entre Boulogne e o Chevalier d’Éon.

Seu talento extraordinário como esgrimista levou o rei Luís 15 a nomeá-lo Chevalier de Saint-Georges, título de nobreza de seu pai, apesar de o Código Negro francês proibi-lo de herdar o título oficialmente, devido à sua ascendência africana. Boulogne alcançou status quase mítico até mesmo do outro lado do Atlântico: John Adams o descreveu como “o homem mais talentoso da Europa em equitação, tiro, esgrima, dança e música”.

Muito pouco é sabido sobre os estudos musicais de Boulogne. Mas quando François-Joseph Gossec, um dos primeiros compositores franceses de sinfonias e um dos regentes mais eminentes do país, fundou a série Concerts des Amateurs, em 1769, ele convidou Boulogne para participar de sua orquestra, primeiro como violinista e mais tarde como mestre de concertos.

As primeiras composições documentadas de Boulogne são de 1770 e 1771. Embora sejam claramente obras de um compositor ainda à procura de sua voz, elas já revelam o engajamento dele com o novo e o inexplorado.

Os seis quartetos de cordas de sua "Opus 1" estiveram entre os primeiros desse gênero compostos na França. Suas três sonatas para teclado e violino colocam os dois instrumentos em pé de igualdade, rompendo com a tradição barroca do baixo contínuo, ainda muito em voga na época. Suas harmonias, texturas e esquemas formais situam o compositor dentro de um estilo clássico ainda em processo de formação.

Retrato de Joseph Boulogne, de Mather Brown
Retrato de Joseph Boulogne, de Mather Brown - Reprodução/YouTube

Boulogne teve seu primeiro sucesso público e de crítica como compositor com seus dois concertos para violino, apresentados pela primeira vez em 1772 na série Concert des Amateurs com o próprio Boulogne como solista. O nível de sofisticação e habilidade dessas obras supera de longe seus esforços dos dois anos anteriores. O especialmente belo Largo do segundo concerto já revela muitos elementos que iriam caracterizar seu estilo posterior, incluindo uma habilidade em equilibrar as forças orquestrais com clareza.

Quando Gossec foi convidado a dirigir a série Concert Spirituel, em 1773, nomeou seu mestre de concertos para ser seu sucessor. Sob a direção de Boulogne, a orquestra Concert des Amateurs passou a ser vista como a melhor da França ou mesmo da Europa. Seu perfil elevado como regente o levou a ser convidado, em 1775, a candidatar-se à direção da Académie Royal de Musique —o cargo musical mais destacado do país. Mas sua candidatura foi derrotada por um abaixo-assinado enviado a Maria Antonieta por um grupo de instrumentistas que faziam objeção à ideia de “receber ordens de um negro”.

Também em 1775, Boulogne compôs duas sinfonias concertantes para dois violinos e orquestra, sua contribuição inicial para um gênero que ele e outros compositores franceses da época ajudariam a definir. Um híbrido do concerto grosso barroco e do concerto clássico, a sinfonia concertante geralmente trazia dois ou mais solistas em um diálogo de virtuoses que emulava um duelo musical. Boulogne compôs oito trabalhos desse tipo entre 1775 e 1778, fato que testemunha a demanda por eles presente na plateia francesa.

Em 1778, Mozart viajou a Paris, onde ficou de março a setembro, hospedado por pouco tempo sob o mesmo teto que Boulogne, na residência do conde Sickingen. É no mínimo implausível supor que Mozart não tenha pelo menos ouvido a música de Boulogne nessa época. Fato interessante, a primeira composição de Mozart depois de retornar à Áustria foi sua "Sinfonia Concertante em Mi Bemol".

E em artigo publicado em 1990 no Black Music Research Journal, Gabriel Banat aponta as semelhanças notáveis entre um techo do Concerto de Violino de Boulogne, de 1777, e um trecho da "K. 364" de Mozart, do ano seguinte. O gesto em questão é recorrente nas composições de Boulogne para solos de instrumentos de corda —uma sequência difícil que sobe até o registro mais alto do instrumento, seguida por uma queda dramática—, mas nunca antes havia aparecido na obra de Mozart até esse Presto.

Quando a falta de financiamento obrigou a Concert des Amateurs a fechar, em 1781, Boulogne e seus músicos encontraram acolhida na recém-formada Concert de la Loge Olympique, que em pouco tempo conquistou a fama de melhor orquestra da Europa. Foi com ela que Boulogne regeu a primeira das seis sinfonias parisienses de Haydn, entre vários outros trabalhos encomendados importantes.

Desencorajado por sua falta de sucesso com a ópera, com a diminuição do patrocínio devida às transformações no cenário político e por seu ativismo crescente na Revolução Francesa como oficial alistado, perto do final da vida Boulogne reduziu fortemente suas atividades musicais. Ele morreu em 1799, não na miséria, mas certamente como uma figura muito menos relevante e valorizada na sociedade francesa do que havia sido duas décadas antes.

Mesmo assim, sua influência na França e fora do país, como curador e criador, continuou a ser sentida por muito tempo após sua morte. É fato notável que sua música tenha sobrevivido a dois séculos do descaso provocado pelo racismo sistêmico que permeia a noção de um cânone ocidental. Nem sua omissão dos livros didáticos de história da música —dos dois usados nos Estados Unidos, Boulogne é mencionado apenas vagamente em um e é omitido de outro— nem a ausência de qualquer defesa dele por parte de programadores, editoras musicais e gravadoras puderam apagá-lo completamente.

Essa é a prova cabal de que Boulogne não precisa ser o segundo melhor em relação a ninguém, e muito menos o eco negro de alguém. Por isso tudo, não vejo a hora de assistir ao filme, mas me poupem do apelido lamentável.

Tradução de Clara Allain

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