Cinema e TV criados na pandemia têm zero ação e ar rural, bem longe das cidades

Filmes nacionais e novela 'Amor de Mãe' enfrentam Covid-19 com normas de segurança, mas têm tramas impactadas

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São Paulo

Luz, câmera e pouca ação. Essa deve ser a realidade dos sets nos próximos meses. Com a lenta retomada das gravações de cinema e TV, soluções para driblar o coronavírus valem ouro. Jogos de luz, novos ângulos de câmera e efeitos especiais devem suprir a impossibilidade de pôr um ator diante de outro.

Mas, além de forçar adaptações na forma como cenas são filmadas, a falta de ação também deve inspirar tramas inteiras. Pelo menos é o que apontam alguns filmes nacionais produzidos em meio à pandemia. São histórias mais intimistas, com poucos personagens e sem momentos épicos.

O mesmo pode ser esperado de “Amor de Mãe”, novela das nove da Globo que teve as gravações paralisadas em março. A expectativa é que as filmagens recomecem em agosto, mas não sem seguir uma série de protocolos rigorosos que deixarão sua marca na trama.

Voltando ao cinema, dois longas filmados durante a pandemia se assemelham por um traço que pode se tornar frequente por um tempo —a fuga dos densos centros urbanos.

“Bocaina” e “Caminho de Volta” foram gravados em casarões no interior. O primeiro é o próximo projeto de Fellipe Barbosa, de “Gabriel e a Montanha” e também um dos diretores de “Amor de Mãe”.

O desejo de produzir durante a crise surgiu a partir do convite da atriz Malu Gali para que o cineasta se isolasse em sua casa no interior de São Paulo. Lá, conceberam juntos a história de duas mulheres que se deparam com a chegada de um homem misterioso e doente —mas não de Covid-19.

“Tudo começou quando a Malu disse que não queria fazer nada. E eu acho que esse não querer significava o contrário”, diz Barbosa. “Aí a gente começou a pensar, se fizéssemos algo, o que seria. Bom, tínhamos que começar com o que a gente tinha, que era essa casa de mais de 200 anos.”

Surgiu então o primeiro rascunho do longa, que incorporou à equipe os atores Ana Flávia Cavalcanti e Alejandro Claveaux e a fotógrafa Helô Passos. Para evitar o vírus no set, eles foram testados antes de ir a Bocaina, no interior paulista.

Barbosa diz que, pela proximidade no set improvisado, o filme virou uma obra coletiva, em constante evolução. Mas, mesmo com toda a precaução, limites foram impostos.

“Mesmo quarentenados e testados, não fizemos nenhuma cena de intimidade. Poderia ser uma provocação num momento tão delicado, um desrespeito. Mas a gente se apropriou dessa limitação com tranquilidade —não precisa de beijo para fazer dramaturgia.”

Cruzando a divisa, no interior mineiro, outro set se erguia quase ao mesmo tempo. “Caminho de Volta”, de Natalia Milano, também tem como ponto marcante a ausência de multidões nas cenas. No filme, uma mulher passa por um período de luto sozinha e também recebe a visita de um homem —o marido que morreu.

Milano dirigiu, roteirizou e protagonizou o longa, tendo como companhia o ator e corroteirista Bryan Ruffo
e o diretor de fotografia Julio Costantini. Outros personagens se juntam à história por meio de videoconferências.

“Ficamos um mês, um pouco mais, em quarentena antes das gravações. Fizemos um bate e volta apenas para buscar equipamentos e depois permanecemos na casa, em isolamento”, diz Milano. “A equipe éramos nós três, desempenhando a função de 30 pessoas num set de filmagem normal. O legal foi que os limites de cada função e a hierarquia que normalmente existem foram flexibilizados. O processo foi muito colaborativo.”

Nesses dois filmes, questões levantadas pela quarentena do coronavírus pairam sobre as tramas, mesmo que a Covid-19 não faça exatamente parte delas. Também é o caso de “Fluxo”, que não faz menção direta à doença, mas tem como premissa um casal que, às vésperas de se separar, é surpreendido por uma pandemia que os obriga a conviver no mesmo apartamento indefinidamente.

Mas as filmagens nesse caso foram um pouco mais complicadas, já que André Pellenz precisou dirigir seus protagonistas, Gabriel Godoy e Bruna Guerin, companheiros na vida real, a distância, por vídeo.

“Marcar um plano sem estar fisicamente no cenário é quase um pesadelo, e a troca entre atores e diretor passa a ser muito mais verbal. É possível, mas é diferente e bem mais cansativo”, diz Pellenz, sobre o processo de gravação.

Ele acredita que a forma enxuta com a qual “Fluxo” foi feito pode apontar para novos caminhos num setor audiovisual assombrado pela pandemia, mas reforça que os protocolos adotados são adequações temporárias, não tendências.

“Acredito que os métodos que utilizamos podem ajudar na busca por um caminho, mas não são um novo modelo em si. A troca, o convívio são fundamentais no cinema”, afirma. “Mas, se por um lado, não é tão simples reduzir o set, porque as pessoas estão lá já que têm funções a fazer, por outro é possível, sim, racionalizar o espaço. Para isso, vai ser preciso trabalhar em locais maiores e investir em tecnologia, além de capacitar as equipes.”

É isso que tem sido feito nos bastidores da televisão brasileira. Racionalizar e capacitar são termos que têm guiado protocolos concebidos nas emissoras que, gradualmente, voltam a produzir conteúdo para além dos departamentos de jornalismo.

No caso de “Amor de Mãe”, o acesso aos sets será limitado, o contato físico —e portanto cenas de intimidade e de luta— vai rarear, medições de temperatura serão condição para a entrada no estúdio, externas serão abandonadas, o ritmo de gravações será atenuado e o departamento de efeitos especiais criará soluções para driblar o distanciamento.

“Trocamos conhecimento com outras produtoras de audiovisual do mundo —Itália, Suécia, Dinamarca, Chile, Austrália, Indonésia, Estados Unidos—, olhamos para os nossos processos e criamos um protocolo de segurança”, conta Ricardo Waddington, diretor de produção da Globo.

“A orientação é restringir a participação de pessoas pertencentes ao grupo de risco e o elenco infantil. Mas, caso seja fundamental para a realização da obra, um comitê será acionado para avaliar as exceções do protocolo, discutir a viabilidade da cena e propor as soluções mais adequadas, que não ponham em risco a saúde da equipe."

O folhetim de Manuela Dias será o único da emissora a retomar as gravações, por enquanto. Também deve ser o único a absorver a Covid-19 em sua trama —não estranhe, portanto, se os personagens aparecerem de máscara em cena.

“A presença do vírus em ‘Amor de Mãe’ vai ajudar a explicar a redução do contato físico. Mas os dramas, as tramas dos personagens e a história principal da novela não sofrerão alteração. Manuela Dias só estará contando de uma outra forma”, complementa Silvio de Abreu, diretor de dramaturgia da emissora.

Mesmo com o retorno do elenco ao estúdio, “Amor de Mãe” só deve voltar à grade televisiva em 2021, depois que seus últimos 23 capítulos estiverem finalizados, assim como “Salve-se Quem Puder”.

Reality shows e programas de auditório e de variedades também ensaiam uma ampla volta à ativa. Na Globo, atrações como o “Encontro com Fátima Bernardes” e o “Caldeirão do Huck” já estão em funcionamento, apesar de terem perdido suas plateias físicas.

O reality culinário “Masterchef”, da Band, também precisou adaptar o que o público estava acostumado a ver nas temporadas passadas, incluindo aí mudanças até nas regras da competição.

Entre as medidas adotadas pela emissora estão estações de higienização, medição de temperatura, distribuição de kits com máscaras, álcool em gel e copos reutilizáveis às equipes e troca de máscaras a cada duas horas, controlada por meio de cores em suas estampas. Todas as normas foram concebidas junto a uma comissão de infectologistas e outros profissionais da saúde.

Na TV Cultura, Jarbas Homem de Mello já grava, há duas semanas, a nova atração “Talentos”. Com a missão de descobrir novas estrelas do teatro musical, o reality reduziu a quantidade de pessoas no palco, e os participantes agora se apresentam a distância, de suas casas, eliminando porém um dos fatores essenciais dos programa de calouros —a emoção e todos os contratempos das performances ao vivo.

“Adaptar o ‘Talentos’ foi um desafio à parte, algo muito frustrante, porque tivemos que fazer um programa muito diferente do que havíamos planejado”, diz Adriana Muniz, diretora de produção da emissora. “Quando percebemos que a pandemia chegou aqui maior do que esperávamos, tivemos duas opções, nos adaptar ou engavetar a atração.”

Entre as principais regras do “novo normal” da TV Cultura estão protocolos semelhantes aos da Globo e da Band, mas também o uso de máscara combinada aos escudos faciais, separadores entre estações de trabalho, orientação para que a maquiagem de convidados seja feita em casa e fracionamento das gravações para que o menor número possível de pessoas ocupe um palco simultaneamente. A banda de “Talentos”, por exemplo, grava sozinha a trilha sonora e aparece no programa por meio de truques de montagem.

“É um desafio hercúleo, porque é uma mudança de padrão de comportamento. Na televisão tudo é muito grande, gravar um programa envolve muita gente. Existe um exército que fica nos bastidores, então fazer com que essas normas sejam respeitadas é um exercício diário”, afirma Muniz.

São passos lentos e bem longe do ideal, mas fundamentais para um dos setores que mais sofrem com a pandemia. Sem uma vacina, restou ao audiovisual deixar projetos ambiciosos para dias melhores.

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