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Depois da era de ouro das séries, streaming abraça os programas trash

Para analistas, aposta da Netflix em realities e competições é estratégia de sobrevivência na guerra entre plataformas

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São Paulo

Gostosas e sarados são desafiados a passar um mês sem fazer sexo numa ilha paradisíaca. Confeiteiros amadores fazem bolos desastrosos, que parecem ter sido vítimas de um acidente nuclear. Jogadores agarram objetos cenográficos como se a vida deles dependesse disso ao atravessar um cômodo inundado por uma gosma explosiva.

Quem um dia zapeou pela televisão numa tarde modorrenta já testemunhou cenas como essas aos montes.

Mas elas não foram vistas num aparelho de tubo anos atrás, e sim no streaming, agora. Especificamente, na Netflix, que encheu seu catálogo com todo tipo de reality show e de competição tresloucada nos últimos tempos.

Lembramos aqui “Brincando com Fogo”, “Mandou Bem” e “Jogo da Lava”, nesta ordem. Só neste ano, porém, estrearam outras 19 produções desse tipo, como “Receita da Boa”, em que chefs testam pratos à base de maconha, “Batalha das Flores”, peleja de esculturas de plantas, e “Operação Autoestima: Antes e Depois”, de cirurgias plásticas, todas produzidas pelo serviço.

Mas essa avalanche trash não é um paradoxo para uma plataforma que criou séries como “House of Cards” e que, só início do ano, recebeu 24 indicações ao Oscar?

Especialistas respondem que, pelo contrário, investir em programas desses gêneros é uma questão de sobrevivência para a empresa. Ainda mais agora, em que os grandes estúdios vem retirando seus títulos da Netflix para lançar plataformas próprias.

Essa estratégia é justificada por três fatores. O primeiro e mais importante deles é que a Netflix se baseia num catálogo extenso, renovado a cada par de semanas. É esse fluxo constante e massivo que alimenta a voracidade do assinante, que aprendeu com a plataforma a maratonar suas séries favoritas.

O segundo fator é a expansão internacional da Netflix, iniciada há quatro anos. Diretor da consultoria Ampere Analysis, o britânico Guy Bisson lembra que as produções costumam ser licenciadas por país ou por região. Oferecer o mesmo conteúdo para os 190 países que em que atua é, desde aquela época, um dos maiores desafios da empresa.

A solução que ela encontrou foi se unir a produtoras locais para desenvolver filmes e séries. Estes cumprem um papel duplo, diz Bisson —aproximam da plataforma o público de cada país ao mesmo tempo em que, obedecendo a uma série de preceitos técnicos, narrativos e estéticos, atendem aos anseios de uma plateia globalizada.

Nesse sentido, realities são um jeito rápido, simples e barato de produzir conteúdo local. O que explica como o número de séries do gênero da Netflix foi de dois para 64 nos 
últimos quatro anos. E também porque franquias como “The Circle” e “Dating Around” ganharam versões brasileiras —o segundo, lançado na semana passada como “O Crush Perfeito”.

Sem contar ainda as refilmagens nacionais de “Casamento às Cegas” e “Brincando com Fogo”, que já foram anunciadas para o ano que vem.

No Brasil, por exemplo, dados da Kantar Ibope Media divulgados pelo colunista Ricardo Feltrin, no UOL, mostraram que, em junho, o streaming obteve o segundo maior índice de audiência do país, atrás só da TV Globo.

Um terceiro fator, ligado ao perfil dos assinantes, ainda ajuda a entender por que esses programas típicos dos canais abertos e a cabo desembarcam agora no streaming.

Bisson afirma que essas plataformas enfim alcançaram um público de espectadores mais velhos, depois de anos dominados pelos jovens. Mas ainda é preciso prender aquele público mais novo que um dia desbravou as plataformas —e realities atendem a essa demanda, segundo o consultor.

Isso tudo contando ainda com a vantagem de que são programas que geram visibilidade e conversas nas redes sociais, observa Mayka Castellano, professora de estudos culturais e mídia da Universidade Federal Fluminense, a UFF.

Vale notar que o trash da Netflix, embora claramente inspirado nos formatos que o antecederam, parece demonstrar uma preocupação mais evidente com pautas atuais, como a representatividade, do que seus precursores das televisões aberta e a cabo.

“Casamento às Cegas” tem entre os participantes um casal de negros e outro inter-racial, enquanto uma franquia como “The Bachelor” demorou quatro temporadas para ver participantes negras ou latinas permanecerem no programa por mais de duas semanas. Um terço dos casais de “O Crush Perfeito” é homossexual. Há ainda “Amor no Espectro”, reality de encontros entre indivíduos com autismo.

Além disso, essas séries são muito bem feitas tecnicamente, afirma Castellano. Ela discorda da classificação dos programas como trash, termo de definições imprecisas que, ela diz, costuma ser acionado para falar de produções que desviam dos padrões esperados.

A pesquisadora afirma que, na verdade, esses programas 
podem ser categorizados como de entretenimento puro.

“O que poderia haver de trash seria o conteúdo, como a ênfase em questões de sexualidade, mas aí podemos esbarrar num falso moralismo ao tachar esses programas como ruins em si mesmos apenas por isso”, ela acrescenta.

A pergunta central, portanto, talvez seja se essa aposta num catálogo menos refinado seja a melhor estratégia num momento em que Disney e HBO, conhecidas pelas qualidade, entram na disputa por assinantes com preços tão atrativos quanto os da Netflix.

Guy Bisson, o consultor, diz que é preciso ter em mente que, embora a plataforma 
tenha sim ampliado bastante a sua oferta nesse sentido, ela não vai deixar de produzir dramas “de prestígio”, de olho nas temporadas de premiações. Até porque esta é a hora de fazer frente à concorrência.

Castellano, por outro lado, afirma que “precisamos relativizar essa ideia do ‘conteúdo original de qualidade’”.

“Me parece que essa é muito mais uma estratégia discursiva do que um fato. Todos esses serviços, quando apostaram em produção original, na verdade aderiram com mais ou menos variação a modelos consagrados na televisão tradicional.”

Outras análises, porém, apontam que essa aposta no mais é melhor da Netflix pode encontrar dificuldades adiante. Isso porque muitas de suas competidoras na guerra do streaming têm modelos de negócios que não dependem só da base de assinantes

É o caso da Amazon Prime Video, braço da poderosa Amazon, ou da Disney, que tem entre suas fontes de receita licenciamento de produtos e parques temáticos. Se os clientes da Netflix deixarem de se satisfazer com o catálogo, ela não tem para onde correr.

Por enquanto, contudo, os reality shows têm feito sucesso entre os espectadores, vide a forte presença dos títulos nas redes sociais e no ranking diário de audiência da plataforma.

Castellano afirma que uma possível explicação para essa popularidade é a busca do público por uma válvula de escape em meio à pandemia e a crise generalizada que o Brasil vive hoje.

“O que muitas pessoas querem é ligar a televisão e se divertir. Reality shows centrados em relações amorosas ou sexuais, por exemplo, escapam totalmente ao que está acontecendo à nossa volta e são normalmente gravados em cenários paradisíacos.”

Avalanche de realities

Encontros
‘Amor no Espectro’, ‘Brincando com Fogo’, ‘Casamento às Cegas’, ‘Casamento à Indiana’, ‘O Crush Perfeito’

Culinária
‘Cozinhando em 4:20’, ‘The Final Table — Que Vença o Melhor’, ‘Mandou Bem’, ‘Receita da Boa’, ‘Sugar Rush’

Game shows
‘Jogo da Lava’, ‘Não Durma no Ponto’, ‘Piscou, Dançou’, ‘Ultimate Beastmaster’

Makeover
‘Reforme na Baixa, Fature na Alta’, ‘Queer Eye’, ‘Ordem na Casa com Marie Kondo’, ‘Styling Hollywood’

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