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Eliana Alves Cruz inova ao trazer personagem trans ao centro de livro de época

No romance, uma das figuras mais violentadas do nosso presente aparece no passado com poder disruptivo

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Fernanda Silva e Sousa

Crítica literária e doutora em letras pela Universidade de São Paulo

Na nova obra da escritora carioca Eliana Alves Cruz, autora do premiado "Água de Barrela" e de "O Crime do Cais do Valongo", "Nada Digo de Ti, Que em Ti Não Veja", ambientado no Rio de Janeiro na primeira metade do século 18, a verdade —e o brilho da obra— “atendia pelo nome de Vitória”.

Ela era a verdade em uma sociedade em que as elites coloniais e a Igreja faziam parte de um “grande e bem montado teatro secular”, cheio de privilégios, jogos de interesses, hipocrisias e, sobretudo, desejos proibidos face a uma moralidade cristã e ocidental.

eliana alves cruz
A escritora Eliana Alves Cruz - Marta Azevedo/Divulgação

Descrita como o “puro, brilhante e belo azeviche", conhecida como mandingueira e uma poderosa curandeira, Vitória é uma africana liberta nascida no Congo chamada Nganga Marinda, que foi escravizada e batizada como Manuel Dias no navio negreiro por ter, segundo o narrador, um falo.

Após se libertar, “escolheu ser apenas Vitória, pois era assim que se considerava: vitoriosa”, identidade que defende a todo custo. “Sou Vitória e qualqué um que me chame por outro nome sangra na ponta da minha faca.”

Vitória, uma mulher negra transexual, se destaca num romance cuja trama envolve a presença da Inquisição no Brasil, representada por meio da vinda do frei Alexandre Saldanha para investigar heresias em um contexto em que duas famílias abastadas recebem bilhetes anônimos contendo ameaças de denúncia à Igreja –a da viúva dona Branca Muniz, que praticava o judaísmo às escondidas, e a de Antônio Gama, cujo filho, Felipe Gama, se relacionava, segundo o bilhete, com “um negro que se diz mulher”.

É Vitória que, num período marcado pelo cerceamento dos corpos por meio da Inquisição, vive, no entanto, abertamente o que acredita, diferentemente do mundo de aparências e desejos reprimidos das famílias Muniz e Gama.

Tão dona de suas vontades era ela que sua relação com Felipe “possuía um sabor tão excitante de proibição que fazia Vitória chegar ao clímax quase sem tocá-lo”.

Nesse sentido, uma mulher trans —que luta ainda hoje contra discursos transfóbicos que a concebem como uma falsa mulher— representa o que há de mais autêntico na obra ao ter coragem de não abdicar daquilo que entendia como sua essência —e que hoje chamaríamos de identidade de gênero—, atuando como um elemento-chave com seus saberes e estratégias de resistência.

Correndo riscos de infundadas acusações de anacronismo e inverossimilhança por incorporar um tema que envolveria apenas os tempos atuais —a identidade de gênero—, Eliana Alves Cruz permite pensar a transexualidade em outro tempo e reconhecer que pessoas negras que hoje se enquadrariam na sigla LGBTQIA+ sempre existiram, mas suas histórias ainda são lacunas no arquivo da escravidão, exigindo um trabalho imaginativo em que a literatura pode escrever uma história tornada impossível.

Assim, uma das figuras mais violentadas do nosso presente é quem aparece no passado com um poder disruptivo. Mesmo ainda sem um presente digno para as mulheres negras trans, retratar uma personagem como Vitória no século 18 é um gesto audacioso de afirmar que elas também têm direito ao passado, de maneira que Alve, ao escrever literatura, insinua, mais uma vez, outra história, indo além do caráter homogeneizador da palavra “escravo”.

O romance nos desafia, então, a considerar que o futuro também depende da nossa capacidade de (re)imaginar o passado de resistência negra de maneira transformadora no nosso presente.

Nada Digo de Ti, que em Ti Não Veja

  • Preço R$ 43 (200 págs.)
  • Autoria Eliana Alves Cruz
  • Editora Pallas
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