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Cinema

Ennio Morricone ajudava a arquitetar as cenas com a potência de sua música

Maestro, morto nesta segunda-feira (6), aos 91, era um gênio capaz de compor para qualquer filme

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Se há uma coisa que não falta na Itália são grandes músicos. E o cinema italiano estava repleto deles —para lembrar só dois, Nino Rota e Carlo Rustichelli—, quando se ouviu pela primeira vez o violão e o som de assobio no letreiro de “Por um Punhado de Dólares”. Era a música de um gênio que
surgia, Ennio Morricone
.

O ano era 1964, o faroeste espaguete apenas acabara de nascer e ninguém sabia quem era Clint Eastwood e menos ainda Sergio Leone. Mas o toque de violão, o assobio, logo nos letreiros chamavam a atenção. Não bastava para tirar a má fama que o novo faroeste peninsular tinha entre os fãs do gênero. Mas já se podia ouvir algo diferente, absolutamente original.

Tanto Eastwood quanto Leone se afirmaram com o tempo, mas a música de Morricone, árida como a paisagem, calma como o pistoleiro Joe, enérgica como seu rival, papel de Gian Maria Volontè, já se fazia notar. Tanto que naquele ano o único prêmio do filme, do Sindicato dos Jornalistas Cinematográficos da Itália foi para a música do filme. Volontè também foi indicado como melhor coadjuvante.

Poucos anos depois, em 1968, uma gaita consagraria o personagem de Charles Bronson em “Era uma Vez no Oeste" —mas aí o chamado western spaghetti já havia conquistado prestígio (e a América). A marca do compositor de faroestes estava lá e não o abandonaria. Seu último trabalho de destaque, com o qual, aliás, ganhou o Oscar, foi em “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino, em 2015.

Reduzir o artista a isso seria absurdo. Morricone, não será exagerado dizer, foi músico antes de ser músico. Seguiu o caminho do pai. Estudou no Conservatório Santa Cecília, em Roma, tocou trompete em clubes de jazz nos anos 1940, desde o final da Segunda Guerra compôs mais de cem peças clássicas.

Mas foi no cinema, aonde chegou em 1960, que revelou a extensão de seu talento. Sua primeira assinatura numa trilha data de 1961 —“O Fascista”, de Luciano Salce, diretor que havia começado sua carreira aqui no Brasil, na Vera Cruz.

Músico de faroestes? Sem dúvida. Mas muito mais. Ele podia compor para os filmes esquerdistas de Gillo Pontecorvo —“A Batalha de Argel”, de 1966, e “Queimada”, de 1969. Podia encarar uma superprodução europeia, como “Os Canhões de San Sebastian”, de Henri Verneuil, e, quase ao mesmo tempo, ainda em 1968, musicar o “Teorema” de Pier Paolo Pasolini.

Sua música podia ter o tom tradicional de discreto acompanhamento das imagens, às quais ajudava a encontrar o tom. Em outros casos, em especial na parceria com Leone, era diferente —a música era como que o coração do cinema operístico do mestre italiano. Não acompanhava a imagem, mas parecia fazer parte dela.

O talento de Morricone não demorou a ser reconhecido na Europa e depois no mundo inteiro. Sua música acompanhou o terror de Dario Argento já na estreia, “O Pássaro das Plumas de Cristal”, se impôs no policial —“Cidade Violenta”, de Sergio Sollima—, chegou aos Estados Unidos pelas mãos de Don Siegel em “Os Abutres Têm Fome”, de 1970, em que Clint Eastwood era estrela e produtor executivo.
A carreira cinematográfica de Morricone rastreia todos os tipos de filme e diretores. Foi parceiro do torturado

Valerio Zurlini , em 1976, tanto quanto de Edouard Molinaro em “A Gaiola das Loucas”, de 1978. Trabalhou com um esteta refinado como Bernardo Bertolucci em “La Luna”, de 1979, seu mais belo filme (entre outros), mas também entendeu o espírito inconformista e direto de Samuel Fuller, para quem fez a trilha soberba do soberbo “Cão Branco”, de 1982.

É possível dizer que Morricone não tinha preconceitos, pois era capaz de trabalhar num semipornô genial, como “Luxúria”, filme de 2002, de Tinto Brass, no irreverente “Ata-me”, de Pedro Almodóvar, em 1989, na retomada do cinema político italiano —“Pasolini, um Crime Italiano”, de Marco Tullio Giordana, de 1995—, no moderno policial americano “Os Intocáveis”, de Brian De Palma, de 1987.

Para um músico com cerca de 500 trilhas assinadas, e com seu talento, os 82 prêmios conquistados podem parecer até pouco. Não na Europa, onde foi reconhecidíssimo. Nos Estados Unidos, é verdade que o Oscar o esnobou várias vezes.

Foi indicado por “Cinzas no Paraíso”, de Terrence Malick, “Os Intocáveis”, “A Missão”, de 1986, “Bugsy”, de 1991, “Malena”, de 2000. Dava para ter levado ao menos uma vez. Mas só ficou mesmo com o Oscar honorário de 2007, antes de emplacar com “Os Oito Odiados”, com uma trilha nem tão feliz para um faroeste idem.

Ennio Morricone escreveu o próprio necrológio no hospital onde estava e viria a morrer, depois de uma fratura do fêmur seguida de queda. Ele se despede dos amigos e, em especial, dolorosamente, da mulher. Seus sentimentos se expressaram na música, mas, certamente, não só na música. Um gênio como ele tinha de ser original e tranquilo até na morte.

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