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Estilistas criam termômetro antirracista para avaliar indústria da moda nos EUA

Em meio a protestos contra racismo, profissionais da área promovem ações para tentar garantir equidade racial

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Vanessa Friedman Salamishah Tillet
The New York Times

No dia 1º de junho, Tom Ford, presidente do Conselho de Estilistas de Moda da América, o CFDA, na sigla em inglês, enviou uma carta aos diretores sobre a reunião marcada para o dia seguinte. Ele queria que o conselho de diretores discutisse os protestos do movimento Black Lives Matter contra a injustiça racial e refletisse sobre o racismo sistêmico na indústria da moda.

Quase todo o mundo participou da reunião no Zoom, entre eles Michael Kors, Virgil Abloh, Prabal Gurung e Vera Wang. Segundo um dos presentes, foi uma discussão agitada, mas não raivosa. O grupo concordou que seria divulgado um comunicado e seria redigido um plano de ação. Todo o mundo foi convidado a enviar suas ideias ao conselho por email.

“Ter uma voz clara e se manifestar contra a injustiça, o preconceito e o ódio racial é o primeiro passo, mas não é o bastante”, dizia o comunicado, lançado dois dias depois, listando quatro iniciativas a ser seguidas. Entre elas, um programa de emprego que teria por objetivo pôr talentos negros em todos os setores da indústria da moda, para ajudar a alcançar um equilíbrio racial na indústria.

Mas nem todas as ideias propostas foram incluídas. E nem todos gostaram do resultado.

Kerby Jean-Raymond, estilista da Pyer Moss e membro do conselho de direção do CFDA, disse ao site Highsnobiety que o comunicado foi “aguado, tipo tutti-frutti, e não encarou os problemas de frente”.

Especificamente, ele disse que o documento não mencionou a brutalidade policial e o que a moda pode fazer a esse respeito. (Não foi possível contatar Jean-Raymond para ouvir seus comentários para esta reportagem.)

Mais de 250 profissionais negros da moda, que juntos se descrevem como a Kelly Initiative, enviaram carta aberta ao CFDA acusando a organização de “permitir culturas exploradoras e discriminação no trabalho”. Eles anunciaram um plano próprio, mais robusto e pautado pela responsabilidade com ética.

Aurora James, fundadora e diretora criativa da Brother Vellies, aparece sentada
Aurora James, fundadora e diretora criativa da Brother Vellies - Nina Westervelt/The New York Times

Então, Aurora James, fundadora e diretora criativa da Brother Vellies, lançou uma promessa pela qual varejistas se comprometem a dedicar 15% do espaço em seus estabelecimentos a produtos feitos por empresas de proprietários negros.

E então veio à tona que outra organização, o Black in Fashion Council, estava sendo criada por Lindsay Peoples Wagner, editora da Teen Vogue, e Sandrine Charles, uma consultora de relações públicas. O conselho reúne “um grupo resiliente de editores, modelos, estilistas, executivos de mídia, assistentes, criativos freelancers e atores da indústria” para “construir um novo alicerce de inclusividade”.

De repente a discussão deixou de ser só sobre o racismo sistêmico na moda, mas sobre até onde a indústria está disposta a ir para estar na vanguarda das transformações sociais e quem está mais bem posicionado para liderar esse movimento.

“As revoluções sempre nascem fragmentadas”, comentou Prabal Gurung, estilista que cresceu no Nepal, é defensor da diversidade e membro do conselho de direção do CFDA. “É quando se unificam que as transformações reais acontecem e a história é feita.”

Mas será que esses grupos díspares vão conseguir cooperar para mudar a cara do mundo da moda americana, ou as diferenças ideológicas e estratégicas expostas por este momento singular vão enfraquecer sua eficácia no longo prazo?

Pode parecer que é um problema restrito à indústria, mas, devido à posição de pedra de toque cultural ocupada pela moda, a resposta terá repercussões amplas.

'Agora não é hora de fazer concessões'

Fundador da Off-White, estilista de moda masculina da Louis Vuitton e membro do conselho de direção do CFDA, Virgil Abloh disse que o CFDA precisa “defender os direitos das pessoas negras na indústria da moda”.

“Qualquer coisa menos que isso seria uma concessão, e agora não é hora de fazer concessões”, ele afirmou.

Fundado em 1962 pela publicitária Eleanor Lambert para promover a moda americana, o CFDA é há décadas o principal organismo representativo da indústria. Ele é mais conhecido fora do mundo da moda pelos prêmios anuais CFDA, que tendem a ser descritos como “o Oscar da moda americana”.

A entidade também tem feito lobby ativo em defesa de questões como a proteção da propriedade intelectual e os direitos de imigração, na medida de sua relevância para a moda, além de levantar recursos para bolsas de estudo e combate ao câncer de mama e à Aids. Nos últimos anos, o CFDA também vem se dedicando a questões ligadas à saúde e à segurança de modelos.

Mas, apesar de frequentemente ser visto como o “organismo que rege” a moda, o CFDA não o é. Ele não tem o poder de regular seus quase 500 membros estilistas. Tampouco tem autoridade sobre varejistas ou profissionais criativos ligados ao setor, como profissionais de beleza.

Por isso, disse Gurung, “o CFDA vem fazendo o trabalho que sempre faz". "Embora ele dê suporte à indústria, agora, confrontado com tanta indignação imediata, é possível que essa sua função já não seja o bastante.”

“O conselho está trabalhando sobre planos para ser postos em ação”, ele prosseguiu. “Enquanto isso, temos uma carta assinada por 250 pessoas que querem mudanças agora, já.”

A carta em questão veio da Kelly Initiative, assim chamada em homenagem a Patrick Kelly, o estilista afro-americano que em 1998 foi o primeiro membro dos Estados Unidos recebido na Chambre Syndicale du Prêt-à-Porter, a organização de estilistas da moda francesa.

O documento criado pelo grupo reivindica a realização pelo CFDA de um censo, abrangendo todo o setor, para colher e divulgar dados sobre a demografia racial de suas organizações e membros; solicita que essas empresas formem parcerias com firmas de recrutamento de talentos para recrutar negros e que participem de auditorias realizadas por terceiros, para garantir transparência e responsabilidade ética.

“Um dos elementos-chave para efetuar transformações, especialmente quanto a diversidade e inclusão é a medição”, explicou Chase-Marshall. “É preciso colher dados, desenvolver referências do que seria um espaço verdadeiramente inclusivo, definir metas e agendar transformações.”

Aurora James, da Brother Vellies, que não tinha conhecimento da Kelly Initiative, também via a medição como elemento-chave quando lançou o 15 Percent Pledge, a promessa dos 15%.

“Começou como uma resposta emocional que demandava uma solução quantitativa”, ela disse. “Eu estava vendo muitas mensagens dizendo que as pessoas estavam compartilhando meu email e o de varejistas afirmando que estão do nosso lado. Então, enquanto eu, como mulher negra, estava em um espaço de desesperança, meu lado de empresária negra estava pensando ‘ok, qual é o modelo de medição que posso usar para associar este sofrimento ao combate?’.”

Segundo ela, empresas de propriedade negra representam 1,3% do total de vendas ao varejo nos Estados Unidos; 88% são feitas por empresas de proprietários brancos. Considerando que os negros formam em média 15% da população dos Estados Unidos, a promessa diz respeito em parte a ter representação igual nos espaços varejistas. Também pretende criar infraestruturas e redes para apoiar essas empresas de proprietários negros.

“Muitas vezes o problema é a falta de acesso ao capital”, disse Aurora James.

A modelo Joan Smalls também lançou uma campanha, Donate My Wage, ou doe meu salário, em que se compromete a investir metade do que receber pelo resto do ano em organizações de base que apoiem o Black Lives Matters. A IMG, sua agência, aderiu à campanha, e Smalls está pedindo a grifes de moda que também compartilhem uma parte de seus rendimentos.

“As grifes têm o dinheiro necessário para que o movimento continue. Vamos precisar desses recursos para fortalecer”, disse Smalls.

'É um sonho grande e uma meta grade'

A emergência dessas três iniciativas diferentes de justiça racial é um reconhecimento da aparente ineficácia da CFDA quanto a uma resposta às diversas maneiras em que as desigualdades raciais se manifestam na indústria da moda.

Mas elas também refletem a dificuldade de mobilizar uma comunidade muito difusa e variada em matéria de disciplinas, estruturas organizacionais e acesso a capital e recursos.

É por isso que o Black in Fashion Council quer ser uma organização do tipo guarda-chuva, que abrange diferentes tipos de iniciativas, além de criar um índice para atribuir avanços às grifes. Será o que os fundadores descrevem como “um relatório e boletim de avaliação anual para avaliar as grifes de moda e beleza pelo grande trabalho que fizeram e as áreas em que ainda precisam melhorar”.

O conselho também pode incluir empresas de mídia e marketing como a Condé Nast, na qual trabalha Peoples Wagner, e todas as organizações associadas terão de se comprometer em ser monitoradas por três anos.

Peoples Wagner e Sandrine Charles disseram que já têm 400 pessoas da comunidade da moda negra filiadas ao Black in Fashion Council. “No momento, vivemos numa cultura do cancelamento, mas queremos passar para uma cultura de responsabilidade ética”, disse Peoples Wagner.

“Qualquer grife pode prometer no Instagram doar US$1 milhão [equivalente a R$ 5,3 milhões] à NAACP [Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor], mas quem é que vai checar se ela realmente fez esse trabalho?”

“A união faz a força, e não faz sentido a gente se dividir”, ela prosseguiu. “Para conseguir transformações, precisamos realmente nos unir. É um sonho grande, uma meta grande, mas achamos que ela é alcançável.”

Peoples Wagner e Sandrine Charles estão em contato com o CFDA, mas se negaram a comentar a Kelly Initiative. Ao mesmo tempo, os fundadores da Kelly Initiative disseram que não receberam qualquer resposta do CFDA.

Chase-Marshall disse que o indício de que a Kelly Initiative tinha quanto à resposta do CFDA à sua carta aberta veio na forma de um comunicado dado à Vogue Runway. Nesse anúncio, segundo ele, o CFDA disse que foi "contatado por vários tipos de esforços e selecionou alguns que vai apoiar”.

Bethann Hardison é ex-modelo e agente de modelos que trabalha com questões de diversidade há décadas e faz parte dos conselhos de assessoria tanto do Black in Fashion Council quanto do CFDA. Ela disse que entende a tensão e a frustração.

“Eu já fui militante”, ela contou. “A gente não poupava críticas à NAACP. É o que você faz quando está revoltada e quer ver as coisas mudarem. Mas acho ótimo que a NAACP tenha resistido à prova do tempo e não caído sob o peso de nossos ataques. Muitas pessoas estão revoltadas no momento. Sei disso. E não há como mudar o sentimento de revolta. Mas vou trabalhar com o CFDA porque vou poder usar o conselho. Posso usar a organização assim como ela me usa.”

Dada a complexidade do problema, há quem pense que uma abordagem multifacetada pode ser a estratégia mais eficaz e duradoura. É por isso que Jason Bolden, que é estilista, faz parte do conselho de assessoria do Black in Fashion Council e também é signatário da Kelly Initiative.

“Para mim, é uma questão de unidade”, disse Bolden. “Uma coisa não impede a outra. Precisamos continuar a fomentar todas e a avançar.”

Tracy Reese, vice-presidente do CFDA, em seu estúdio em Detroit, em 13 de agosto de 2019
Tracy Reese, vice-presidente do CFDA, em seu estúdio em Detroit, em 13 de agosto de 2019 - Brittany Greeson/The New York Times

Tracy Reese, que deixou Nova York recentemente para criar a linha de roupas sustentáveis Hope for Flowers, em Detroit, sua cidade natal, é vice-presidente do CFDA e a pessoa negra que há mais tempo é integrante do conselho de direção da entidade.

“Esta é uma indústria branca. Se você não é uma pessoa negra que atua nela, não tem como entender como é nossa situação”, ela comentou. “Se queremos fazer algum avanço significativo, precisa haver um esforço conjunto, e não um esforço faccional –ou 20 esforços diferentes.”

“As pessoas que formam essas facções sabem o que querem dizer; elas são corajosas”, prosseguiu. “Estão reagindo ao desafio, e isso é importante. Mas a coisa pode avançar mais se todos trabalharmos de olho em uma meta comum –equidade, igualdade e antirracismo.”

“É uma discussão que precisa ser travada”, ela disse. “São múltiplas discussões —sobre o presente, onde estamos hoje, o futuro e para onde ele vai. E há também as queixas do passado que precisam ser ouvidas.”

Tradução de Clara Allain

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