“Uma linguagem opressiva faz mais do que representar violência; ela é, em si mesma, violência; faz mais do que representar os limites do conhecimento; ela limita, de fato, o conhecimento.”
Não faltam, no Brasil de hoje, exemplos quase diários da linguagem opressiva caracterizada por Toni Morrison ao receber o Nobel de literatura em 1993. O famoso discurso é um dos textos incluídos na coletânea “A Fonte da Autoestima” —uma leitura fundamental, agora mais do que nunca.
Morrison se refere justamente à retórica de alguns políticos. “Impiedosa em seu policiamento, não tem desejo ou propósito além de manter o alcance de seu próprio narcisismo narcotizante, sua própria hegemonia e exclusividade. Por mais moribunda, não deixa de ter seus efeitos, posto que prejudica o intelecto, paralisa a consciência, suprime o potencial humano.”
É “uma linguagem oficial forjada para sancionar a ignorância”. O discurso, é claro, é dirigido “apenas aos que obedecem”.
Escritos entre 1976 e 2013, os discursos e ensaios do livro muitas vezes antecipam discussões que assumiriam uma importância decisiva nos anos seguintes. Não é exagero, portanto, falar em olhar profético quando se trata de Toni Morrison.
Em mais de uma ocasião, ela examina a dissolução da fronteira entre o privado e o público —investigando a possibilidade de um debate fértil na segunda esfera. “A questão se torna como e onde experimentar o público no tempo, no idioma, enquanto afeto”, escreve.
Morrison sempre insistiu no potencial transformador da linguagem, sobretudo enquanto literatura. Também defendeu a necessidade de se prolongar esse potencial em um debate público produtivo e consequente em torno dos livros. Saber nomear —sem perder de vista o domínio do indizível— seria um início de insubmissão à violência da linguagem opressiva.
Ela sustenta, assim, que “o estudo da ficção pode ser [um] mecanismo de reparo na desconexão entre o público e o privado”. Tal reparo está associado ao próprio ato de ler —a literatura pressupõe “a experiência de sermos pessoas multidimensionais”—, mas também ao de compartilhar e debater o que foi lido. Ao falar dos romances que escreveu, Morrison destaca que os “atos sociais completam a experiência de leitura”.
Todos os ensaios sobre literatura incluídos na coletânea são excelentes. Ora Morrison fala de grandes autores, destacando o racismo nas representações e na formação do cânone, ora da própria escrita.
Ela diz que seu interesse, quando elaborou seu primeiro livro, era “o racismo enquanto causa, consequência e manifestação de psicoses individuais e sociais”.
“A construção da raça e suas hierarquias têm um poderoso impacto na linguagem expressiva, assim como a linguagem interpretativa, figurativa, impacta poderosamente a construção de uma sociedade racial”, escreve. “A troca íntima entre a atmosfera do racismo e a linguagem que o afirma, apaga, manipula e transforma é inevitável entre ficcionistas, que têm de sustentar um olhar fixo sobre o reino da diferença.”
Ela também critica a imprensa, que, enquanto esfera comum com potencial de facilitar diálogos e trocas, quando não transformações sociais, parece incapaz de evitar a disseminação de desinformação racista. E, de novo, lá está a necessidade urgente de “reinventar o espaço público —e o diálogo público que pode acontecer dentro dele”.
Morrison tinha uma capacidade rara de se dirigir a todo tipo de leitor ou ouvinte, fosse ao resgatar algumas de suas memórias, fosse ao enveredar por análises históricas ou políticas.
Seus escritos reacendem a esperança na literatura e na viabilidade e eficácia das discussões públicas, e reforçam, pelo próprio exemplo que o leitor tem diante de si, o compromisso inadiável com uma postura ética que leve em conta as raízes, o peso e o efeito das palavras.
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