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The New York Times

Musical 'Hamilton', agora no streaming, é ícone dos ideais da era Obama

Versão filmada do espetáculo de Lin-Manuel Miranda chega em boa hora e é mais vital e desafiadora que nunca

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A.O Scott

As cenas iniciais da versão filmada do musical da Broadway “Hamilton”, que estreia em streaming na Disney Plus no fim de semana de 4 de julho, Dia da Independência dos Estados Unidos, nos transporta para trás no tempo para dois períodos distintos.

Com suas bombachas e seus casacos com botões de latão, as pessoas sobre o palco pertencem à Nova York de 1776. É quando um jovem de 19 anos chega do Caribe —o “bastardo, imigrante, filho de uma meretriz” que compartilha seu nome com o título da produção— se lança na vida política, entrando para um grupo de revolucionários antibritânicos e, mais tarde, se torna o braço direito de George Washington e aparece na frente da cédula de U$S 10.

Mas este Hamilton, representado com energia e charme por Lin-Manuel Miranda –autor da música, do libreto e da letra—também pertence à Nova York de 2016. Filmado (pelo diretor do musical, Thomas Kail, e o cinematógrafo Declan Quinn) diante de uma plateia ao vivo no teatro Richard Rodgers, o filme, embora não seja estritamente falando um documentário, não deixa de documentar seu momento. Evoca uma multidão de ideias, discussões, sonhos e premissas que no momento atual parecem tão distantes e difíceis de recapturar quanto a intriga e os enfrentamentos ideológicos do final do século 18.

“Hamilton”, que estreou no Public Theater no início de 2015 antes de ir para a Broadway e de lá chegar a todos os recantos da cultura popular americana, talvez seja a expressão artística suprema do ideal da era Obama de patriotismo progressista e multicultural.

A opção de chamar atores negros e latinos para representar os “pais fundadores” dos Estados Unidos e seus aliados —Daveed Diggs fazendo Thomas Jefferson e o Marquês de Lafayette, Christopher Jackson como George Washington e Leslie Odom Jr. como Aaron Burr, o amigo ou inimigo mortal de Alexander Hamilton— foi muito mais que um simples gesto de inclusividade. (Jonathan Groff encarna a brancura essencial e irredutível do rei George 3º.)

Apresentado em canções que fazem uma síntese brilhante de hip-hop, músicas de shows e todos os tipos de pop, o argumento do musical era que a história americana é um livro aberto. Qualquer um de nós deve poder se inscrever nesse livro.

Primeiro secretário do Tesouro e arquiteto do sistema bancário americano, Alexander Hamilton foi quem Lin-Manuel Miranda escolheu para encarnar essa ideia –um outsider sem dinheiro e com pouquíssimos contatos que, munido só de inteligência, talento e garra, se impeliu para o centro da narrativa nacional.

Miranda compartilha um pouco da ambição e inteligência de seu herói, convertendo Hamilton num avatar da aspiração americana moderna. Como seu país, ele canta, ele é “jovem, tem fome de vida e disposição de brigar”.

A história de sua ascensão funde esforço individual e luta coletiva. Apesar de se ter em altíssimo conceito, algo que chega a ser cômico (um dos versos fala em “meu cérebro de primeira linha”), Hamilton não mede o sucesso apenas em termos pessoais.

Esse é o grande defeito de Aaron Burr: ele corre atrás do poder e do prestígio sem se expor a riscos ou se engajar com um princípio. Mas Hamilton quer se destacar por fazer uma diferença. Para ele, o crescimento pessoal e a construção da nação são aspectos de um único e mesmo projeto.

“Hamilton” é uma brilhante proeza de imaginação histórica, o que não é o mesmo que uma aula de história. Miranda usou a grande biografia de Hamilton escrita por Ron Chernow como Shakespeare usou as “Crônicas de Holinshed” —como um tesouro de matéria-prima dramática, com personagens e tramas.

Uma das maravilhas do musical é o modo como recria pessoas mortas há muito tempo e cercadas de lendas. Os closes e os movimentos de câmera nesta versão filmada intensificam o carisma dos atores, acrescentando uma dimensão de intimidade que compensa pela perda da eletricidade da experiência teatral ao vivo.

O desinibido e dândi Jefferson forma um contraste perfeito com Hamilton –seu rival, alguém que está no mesmo nível intelectual e que é seu parceiro às vezes relutante na construção de uma nova ordem política.

Embora Hamilton odeie quando George Washington o chama de filho, o pai do país é uma presença paterna calorosa e às vezes severa na vida de seu protegido. O pérfido Burr talvez seja a figura mais shakespeareana do espetáculo —um homem talentoso, atormentado e em última análise destruído pelo fato de não ter conseguido ter maior importância do que teve.

Não que as forças públicas sejam as únicas que movem “Hamilton”. Não me esqueci das irmãs Schuyler, que têm alguns dos melhores números e que às vezes enfraquecem as tendências patriarcais inerentes a esse tipo de empreitada.

Miranda entremeia a história de turbulência revolucionária e as subsequentes batalhas partidárias do início da era nacional americana em uma crônica de namoro, casamento, amizade e adultério que tem suas próprias implicações políticas.

Angelica Schuyler, papel da magnífica Renée Elise Goldsberry, a mais velha das três irmãs, é uma pensadora livre e feminista limitada pelas opções restritas disponíveis para as mulheres de sua época e classe social. Sua irmã Eliza, vivida por Phillipa Soo, que se casa com Alexander, é salva de ser reduzida a uma figura passiva e sofrida pela riqueza emocional de suas canções.

Mas o pessoal e o político não se contrabalançam perfeitamente. “Podemos voltar à política?”, pergunta Thomas Jefferson depois de um episódio especialmente sombrio na vida familiar de Hamilton, e é difícil deixar de compartilhar sua impaciência. Os detalhes biográficos são necessários para a estrutura e textura do show, mas o espetáculo é movido pelas discussões do gabinete, as guerras de panfletos, os discursos altivos, as negociatas escusas, toda a glória e a complexidade do governo independente.

Repetindo: isto não é um livro didático. Foram tomadas liberdades. Críticas podem ser feitas. O problema da escravidão não é ignorado, mas escapa pelas beiradas. O fato de Jefferson possuir escravos é citado por Hamilton como sinal de má-fé (“suas dívidas estão pagas porque você não paga a mão de obra”), mas Washington não é citado.

“Hamilton” é animado sobretudo pela fé no potencial de autocorreção do experimento americano, a ideia antiga e nobre de que um passado aproveitável —logo, um futuro mais perfeito— pode ser construído a partir de um histórico carregado de violência, injustiças e contradições. O otimismo dessa visão, filtrado por uma sensibilidade tão generosa quanto a de Lin-Manuel Miranda, é inspirador.

Também é doloroso. Uma lição que os últimos anos devem nos ter ensinado –ou reconfirmado—é que não existem bons velhos tempos. Não podemos voltar para 1789, 2016 ou qualquer outro ano para escapar dos fracassos que nos atormentam hoje. Esta encenação de “Hamilton” de quatro anos atrás, vista sem nostalgia, parece mais vital, mais desafiadora que nunca.

As questões centrais que ela apresenta —“quem vive, quem morre, quem conta sua história?”— estão bem à nossa frente, nos olhando nos olhos. A letra é carregada de palavras de incentivo e repreensão. Vários versos ficaram gravados na minha cabeça ao longo dos anos, mas no momento não consigo esquecer os trechos de “One Last Time” tirados “ipsis litteris” do discurso de adeus de George Washington, redigido por Hamilton. E não consigo evitar verter lágrimas quando o presidente que se despede canta “o doce prazer de partilhar, em meio a meus concidadãos, da influência benigna das boas leis sob um governo livre”.

Tradução de Clara Allain

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