Neil Gaiman, obsessivo autor de 'Sandman', já ameaçou se matar por cena com boquete

Escritor discute adaptações de obras como 'American Gods' e relança agora 'Coraline' no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

mulher com cabelo arrepiado, botão no lugar do olho aproxima língua de chave

Ilustração de Chris Riddell para nova edição de "Coraline", de Neil Gaiman Divulgação

São Paulo

Neil Gaiman é um artista tão multifacetado que desafia qualquer rótulo de jornalista preguiçoso.

Passeia dos contos sensíveis de “Coisas Frágeis” ao épico intrincado de “Deuses Americanos”. Vai de uma saga em quadrinhos perturbadoramente existencial —“Sandman”, que o consagrou nos anos 1980— à mais assustadora literatura infantil —caso de “Coraline”, que acaba de ser catapultado de volta às listas de mais vendidos por uma nova edição da Intrínseca.

Uma das poucas recorrências assertivas na sua obra é o fantástico, que permeia a história da menina que descobre um mundo paralelo atrás de uma porta de casa, dominado por uma versão arrepiante de seus pais, com botões no lugar dos olhos.

Aqui está um escritor que valoriza a liberdade absoluta, e o repórter pergunta se tem algum lado ruim em nunca haver se assentado num gênero determinado.

“A coisa é que não entendo por que qualquer pessoa faria isso”, diz Gaiman, por telefone, de bate-pronto. “Não entendo quem faz a mesma coisa de novo e de novo porque tem sucesso comercial. Não mais que entendo alguém que gosta de batata assada e come batata assada toda noite pelo resto da vida.”

Gaiman se afasta cada vez mais de uma dieta exclusiva de tubérculos. Nos últimos anos, ele intensificou seu envolvimento com séries de TV —aquelas que se baseiam em seus livros têm se multiplicado tanto que estão quase virando um filão próprio.

neil gaiman com cabeça apoiada na mão
O escritor Neil Gaiman, que relança o sucesso infantojuvenil "Coraline" pela Intrínseca - Rozette Rago/The New York Times

O nível de ingerência do autor britânico nessas adaptações não foi sempre o mesmo, entretanto. Se em “American Gods”, criada por Bryan Fuller e Michael Green, ele atuou na função mais lateral de produtor-executivo, na minissérie “Good Omens”, Gaiman escreveu cada um dos seis episódios.

O autor suspeita, aliás, que foi por causa do sucesso dessa série que “as pessoas estão dando ouvidos” a ele agora.

“Em ‘American Gods’, às vezes me ouviam, às vezes não. Se eles tivessem uma ideia, iam em frente mesmo se eu dissesse algo”, lembra. “Eu tinha de trabalhar duro para impedir que virasse algo de que não gostava. No primeiro episódio, impedi que Shadow [o protagonista] recebesse um boquete no túmulo da sua mulher. Eu disse, ‘se você fizer isso, eu vou me matar, eu vou sair daqui, me jogar no meio dos carros e deixar um bilhete dizendo que foi por isso’.”

O escritor ganhou o respeito do meio televisivo, segundo sua impressão, depois de mostrar que entendia de adaptações ao levantar do zero “Good Omens” para a Amazon e a BBC —o que, a propósito, só fez por insistência de Terry Pratchett, coautor do livro, morto há cinco anos.

Esse impulso de respeito veio a calhar, agora que é a vez de sua obra mais reverenciada ganhar as telas. “The Sandman” tem previsão de estrear na Netflix em 2021, mas ainda se sabe muito pouco sobre a produção. Gaiman conta ter ajudado a escrever o piloto e estar “trabalhando de perto” com o criador, Allan Heinberg.

Uma adaptação diferente da mesma série está saindo do forno, aliás. No último dia 15, uma versão em áudio da história de Morpheus chegou à plataforma Audible, um trabalho de que Gaiman diz se orgulhar —ele foi diretor criativo e empresta sua voz como narrador. Mas atenção –não é um mero audiolivro, e sim uma recontagem dramática da história, com atores de peso como James McAvoy, como o protagonista, Riz Ahmed, Michael Sheen e Andy Serkis.

É curioso que, quase ao mesmo tempo, estejam em produção duas versões distintas de uma série tão audaciosa que era considerada inadaptável.

“Eu gostava de escrever histórias em quadrinhos, no começo, porque era um tipo de mídia que as pessoas confundiam com um gênero”, conta o autor. “Então ninguém se preocupava com o que eu fazia, desde que ainda fosse ‘Sandman’. Eu ia mesclando gênero atrás de gênero e ninguém nunca reclamava.”

Não faltaram tentativas fracassadas nas últimas décadas. Gaiman contou ao New York Times que, nos anos 1990, ele bateu na porta da Warner pedindo que não fossem adiante com o longa-metragem de “Sandman” que estavam preparando. “Ninguém nunca entrou no meu escritório para pedir que eu não fizesse um filme”, respondeu a executiva do estúdio.

Agora a coisa mudou de figura. Quando o escritor ouve uma pergunta sobre o porquê de buscar esse envolvimento maior nas suas adaptações —se é por um lado controlador ou por um fascinado com a reinvenção de seus livros em outras mídias— ele hesita por 18 segundos antes de responder.

“Meu trabalho em algo como ‘Sandman’ é garantir que não vire algo que não é ‘Sandman’. Há 100 milhões de pessoas no mundo que ficariam chateadas se isso acontecesse. É meu trabalho traçar essa linha.”

Muitos desses leitores ávidos estão no Brasil, e Gaiman sublinha diversas vezes durante a conversa seu carinho pelo primeiro país não anglófono a publicar o quadrinho, três décadas atrás.

Sua última vinda ao país, em 2008, foi num dos episódios mais anedóticos da Flip, em Paraty. Mais de mil pessoas fizeram fila para pegar seu autógrafo depois da mesa de que participou.

Ele lembra que o tcheco Tom Stoppard, a outra grande estrela daquela edição, veio até ele dando risada e comentando que as outras filas do evento tinham reunido “umas 20 pessoas”, enquanto ele conversou com fãs por mais de cinco horas.

neil gaiman cercado de pessoas
Neil Gaiman deu autógrafos durante mais de seis horas na Flip de 2008 - Rogério Cassimiro - 04.jul.2008/Folhapress

“Minha grande frustração nos últimos 12 anos foi tentar voltar aí e não poder. Quero muito ir com Amanda [Palmer], minha mulher, mas fica difícil quando você é casado, e mais ainda agora que viajar está complicado.”

Gaiman começou a conversa, aliás, lamentando “os tempos tão duros” que o Brasil vive. Quando começou a pandemia, o escritor estava na Nova Zelândia, um país onde a primeira-ministra, Jacinda Ardern, foi “incrivelmente sensata e eficiente, e agora não tem mais um problema de Covid lá”. (Pouco depois, o escritor voltou para sua casa na Escócia, onde passou três meses em lockdown.)

“Aqueles como Trump, Boris Johnson e o seu cara [Bolsonaro], que levaram isso como uma questão pessoal, pondo a política acima das vidas das pessoas, não se deram bem. E pessoas que não precisavam ter morrido morreram.”

A pandemia coincide com um momento em que “estão politizando coisas que pareciam impossíveis de politizar”, comenta ele, e em que as pessoas tendem a “acreditar nas coisas que reforçam aquilo em que elas já acreditam”.

E o efeito da quarentena, diz ele, se limita em deixar todo mundo mais rabugento. E em dificultar o trabalho de escritores, preocupados demais com a vida real, em criar ficção.

Gaiman, por seu lado, não mostra disposição alguma em pisar no freio criativo. “Não vou estar nesse planeta por muito tempo. Tenho quase 60 anos. E a única coisa que eu sei sobre o tempo é que ele se move num piscar de olhos”, diz. “E tem tanta história que eu ainda não contei, em tantas mídias. Vai ser muito triste se eu morrer. São bons mesmo, esses livros que eu não escrevi.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.