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Biografia de Charles De Gaulle dá a sensação de encarar um titã

Livro exibe ambiguidades e pontos obscuros do líder francês que viveu período das grandes guerras

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Charles de Gaulle: Uma Biografia

  • Preço R$ 139 (1.112 págs) e R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Julian Jackson
  • Editora Zahar
  • Tradução Berilo Vargas

Na personalidade do militar e político francês Charles de Gaulle, o insuportável e o inspirador se fundiam de forma quase indissociável. Conviver com o sujeito ou o contrariar por qualquer motivo devia ser um inferno, mas é difícil imaginar uma combinação mais apropriada para resgatar a França do desastre da Segunda Guerra Mundial.

As facetas complicadas do chamado “mistério De Gaulle”, bem como o impacto tremendo de sua vida pública, são explorados com maestria pelo historiador britânico Julian Jackson em sua biografia do general, que acaba de chegar ao Brasil.

As mais de mil páginas do trabalho ajudam, é claro, a enxergar o personagem central por múltiplos ângulos, mas é a capacidade de Jackson de combinar fontes e ressaltar as ambiguidades e pontos obscuros do líder francês a grande responsável pela sensação de que o De Gaulle do livro é uma pessoa de verdade, e não uma simples estátua equestre de heroísmo.

Homem branco posa para foto vestindo farda e cruza os braços
Foto de general francês Charles de Gaulle, sem data - Domínio público

E isso, quando se considera que durante muito tempo o general quis justamente projetar a imagem de estátua heroica, é um feito e tanto. O paradoxo aqui é que, embora fosse perfeitamente capaz de se comportar como velha raposa da política, De Gaulle de fato era dotado de uma fé quase sobrenatural em sua predestinação para salvar seu país quando a França se rendeu aos nazistas em 1940.

Outra das grandes ironias da história narrada por Jackson é que o militar era um candidato bastante improvável a levar seu país de volta ao patamar das grandes democracias durante a Segunda Guerra.

Nascido numa família de intelectuais católicos, conservadores e defensores da monarquia, De Gaulle admirava muitos aspectos do Antigo Regime derrubado pela Revolução Francesa e não via muito futuro para a democracia parlamentar da França nas primeiras décadas do século 20.

Depois de combater os alemães na Primeira Guerra Mundial e ser feito prisioneiro por eles, o oficial transformou a necessidade de se preparar para um futuro conflito contra os antigos inimigos numa de suas obsessões.

Soldados marcham
Em cerimônia, oficiais comemoram a resistência francesa do general Charles De Gaulle em 1940. O presidente Felix Gouin discursa acima dos Invalides, na praça de Napoleão homenageando as tropas francesas - United Press Photo

Quando a França foi rapidamente derrotada pelos exércitos de Hitler em 1940, a antipatia visceral de De Gaulle contra o domínio da Alemanha, mais do que propriamente uma oposição ideológica ao nazismo, é que o levou a fugir para Londres e iniciar uma espécie de governo no exílio, a chamada França Livre.

O livro mostra em detalhes como, de início, essa atitude foi completamente quixotesca. De Gaulle estava longe de ser o general mais graduado ou influente do Exército francês; a maioria dos diplomatas de seu país o repudiaram e se mantiveram leais ao novo governo da França, o autoritário e antissemita regime de Vichy; soldados franceses refugiados no Reino Unido preferiram, em sua maioria, voltar para casa, em vez de continuar a lutar sob as ordens daquele desconhecido.

De início, De Gaulle só podia contar mesmo com o apoio do primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e com a própria capacidade de incitar ao menos alguns franceses a resistir aos alemães do outro lado do mar por meio dos discursos que fazia pelo rádio na BBC.

O orgulho e a cabeça dura do general, que exigia ser tratado de igual para igual por Churchill e pelos demais chefes da aliança contra os nazistas, quase puseram esse apoio a perder múltiplas vezes, mas essa mesma teimosia ajudou De Gaulle e seu punhado de seguidores fiéis a arrancar cada vez mais territórios do império colonial francês das garras do regime de Vichy, garantindo a ele, pouco a pouco, mais respeito e poder de fogo.

As técnicas implacáveis de negociação eram empregadas com a máxima consciência por De Gaulle. “Comece dizendo ‘não’”, declarou ele certa vez. “Duas coisas vão acontecer: ou seu ‘não’ está destinado a continuar sendo um ‘não’ e você mostra que tem caráter, ou finalmente você acaba dizendo ‘sim’. Mas nesse caso [o primeiro] você tem tempo para refletir; [no segundo] as pessoas vão ficar mais satisfeitas com seu ‘sim’.”

Por trás de sua certeza férrea de estar fazendo a coisa certa havia o que o general chamava de “uma certa ideia da França”, a crença no destino grandioso de seu país, na sua função civilizadora no planeta e na unidade de seu povo. Havia também a crença de que De Gaulle era o arauto desse destino —quando tentava convencer alguém a se juntar a ele, o general invariavelmente dizia algo como “a França requer a sua ajuda”. De Gaulle, no fundo, era igual a França.

De tanto insistir, ele acabou liderando o governo provisório que se formou depois do fim da ocupação alemã em 1944. E, após anos afastado das rédeas da política, ele governou o país sem enfrentar quaisquer rivais sérios no período entre 1958 e 1969.

Como primeiro-ministro e presidente da República, o general foi um “monarca republicano”, diz Jackson. Ele se tornou mestre em enganar adversários e manipular aliados com declarações vagas e contraditórias, buscou se legitimar falando diretamente à população pela televisão (mídia que rapidamente dominou) e buscou firmar a independência da França no cenário global se opondo às ambições dos Estados Unidos e cortejando os países em desenvolvimento.

Ego (ele gostava de referir a si mesmo na terceira pessoa) e cinismo nunca faltaram a De Gaulle. Mas é praticamente impossível fechar o livro sem a sensação de ter estado na presença de um titã.

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