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Brasileiros levam cara da quebrada e chinelo de dedo aos games com tática hacker

Movimento que tem um pé na pirataria transforma jogos como 'GTA' e 'Winning Eleven' à luz da realidade do país

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Screenshot de '171', game que tem sido chamado de 'o GTA brasileiro' e deve ser lançado em 2022

Screenshot de '171', game que tem sido chamado de 'o GTA brasileiro' e deve ser lançado em 2022 Divulgação

São Paulo

Gol quadrado, chinelo de dedo, Opala Diplomata, bermuda de tactel, óculos chavoso —tudo em pixel e com palavrões em português. Essa é a ambientação do game ainda inédito "171", que tem sido chamado de “o GTA brasileiro”, em referência à franquia “Grand Theft Auto”.

Na história, dois irmãos vivem num bairro simples da fictícia Sumariti, cidade inspirada em Sumaré, no interior paulista, entre trocas de tiros e perseguições de carro, compondo o roteiro ainda a ser finalizado. É um jogo original, que deve ser lançado em 2022, mas as origens do “171” guardam pontos em comum com uma prática já enraizada na cultura gamer brasileira de fazer intervenções em jogos, na base da gambiarra —os “mods”, que vêm de “modificação”.

Um “mod” pode envolver só a inclusão de uma música mas também intervenções mais robustas. Um jogo que se passa originalmente em Miami passa a ter a cara de um Rio de Janeiro capenga, por exemplo, afirma Alessandra Maia, pesquisadora de mídias digitais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“O ‘171’ não surgiu exatamente de um ‘mod’ de ‘GTA’, surgiu da vontade de ter um game desse tipo ambientado no Brasil, que coincidiu com a época da popularização da internet junto com a quantidade de ‘mods’ retratando o Brasil em games”, conta Eduardo Favaro, designer da Betagames Group.

O fenômeno dos "mods" também está ligado ao desejo de ter acesso a jogos caros para os bolsos brasileiros e à cultura de pirataria de games por aqui.

“São processos rudimentares, precários”, diz José Messias, pesquisador de games e professor da Universidade Federal do Maranhão. E isso, para ele, é um fenômeno político, porque demanda pelo acesso tem a ver com a desigualdade global.

“A modernidade não veio para todos de forma igual”, diz.

Países em desenvolvimento têm um acesso dificultado a games —geralmente mais caros, em outra língua que não a nativa do usuário, e com uma infraestrutura de banda larga longe do ideal. Os “mods” podem ser entendidos como “uma reedição da prática da ‘antropofagia’, de se apropriar de um conteúdo, estrangeiro ou não, mas hegemônico, do mainstream”, diz Messias.

Daí, se há quem prefira controlar os supercraques do Barcelona, também há quem queira jogar com times da série B do Campeonato Brasileiro.

Allan Jefferson começou a modificar games com um clássico jogo de futebol, o “International Superstar Soccer”, de Super Nintendo e disponibilizava para quem frequentava sua locadora, na cidade paulista de Mogi Mirim.

Ele percebeu que poderia alterar não só os nomes, mas a fisionomia dos jogadores, suas habilidades, os estádios e uniformes e até a trilha sonora e acabou criando o “Bomba Patch”, uma modificação do “Winning Eleven” —hoje, “Pro Evolution Soccer”—, que se tornou um clássico pirata dos games no Brasil.

“Quando um jogador mudava de time, eu já fazia a atualização, e a pessoa poderia jogar na minha locadora.” O nome vem da premiação dos primeiros campeonatos que ele organizava, as bombas de chocolate feitas pela mãe dele.

Isso aconteceu por volta de 2004, em meio à ascensão das LAN houses, e os jogos adaptados para o futebol brasileiro eram os atrativos para segurar o público na locadora dele. Os clientes começaram a pedir emprestados os jogos, e ele passou a fazer cópias.

“Era para divertimento local. De repente, as lojas no centro da minha cidade tinham o jogo para vender. Depois, os camelôs de Campinas vendiam. Mas só entendi a dimensão do ‘Bomba Patch’ quando fui estudar na Paraíba. Estava em um sítio na cidade de Guarabira, fui a uma locadora e vi o ‘Bomba’ na prateleira. O dono me disse que era o jogo que mais vendia, e era com isso que ele pagava os estudos dos filhos.”

A locadora paraibana começou a patrocinar anúncios no jogo, e em troca ele voltou a fazer as modificações. Até hoje, atualizações são lançadas online, para vários consoles, e muita gente continua jogando o “Bomba” em seu formato original, de PlayStation 2.

A pesquisadora Alessandra Maia lembra que jogar não é a única forma de interagir com um game. Muitas pessoas preferem só assistir —prova disso é o fenômeno da Twitch, plataforma de transmissão de games, além da infinidade de vídeos de gameplay no YouTube.

“Alguns querem saber se vale a pena comprar aquele jogo, outros gostam da história, mas têm enjoo de movimento, e também tem quem não pode comprar, porque é caro”, diz Maia.

Tudo isso desemboca no fenômeno da “machinima”, ou máquina mais animação, em que séries, filmes e curtas são criados a partir de games. Não por acaso, o Brasil é palco de um sucesso estrondoso —uma série que começou como gameplay de “The Sims” hoje é vista por milhões e virou até livro, “Girls in the House”.

Raony Phillips criou o programa há seis anos. Ele conta que no início muitas pessoas não entendiam como era possível transformar “uma animação com estética de Barbie” em algo tão brasileiro.

“Fiquei com muito medo da EA [desenvolvedora do 'The Sims'] implicar com direitos autorais ou algo do tipo”, conta o produtor, que depois foi surpreendido pelo apoio que a empresa deu a “Girls in the House”.

Atualmente, Phillips não só recebe os lançamentos da marca em sua casa, como também é convidado para eventos internacionais promovidos pela franquia e participa de reuniões que visam atrair mais consumidores brasileiros aos jogos do “The Sims”.

A EA e Philips estão agora desenvolvendo um novo programa de "machinima", no qual a história central será um reality show interativo, com a participação de outros youtubers brasileiros. “É um projeto para estimular outras pessoas a criarem conteúdos no ‘The Sims’”, afirma ele.

Mesmo que a cultura dos "mods" tenha um pé na pirataria, a reação dos detentores dos direitos autorais pode ser de fazer parcerias. A EA afirma que apoia diversos criadores locais, mas também tenta “garantir que o conteúdo seja respeitoso e esteja alinhado com nossos valores de brincadeira saudável”.

A Blizzard, que publica franquias como “World of Warcraft”, “Diablo” e “Overwatch”, diz e nota que “tem visto modificações e conversões muito elaboradas e interessantes de nossos jogos” e que não tem problemas com isso. “Claro, desde que seja para uso pessoal e não comercial.”

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