Descrição de chapéu Artes Cênicas

Cartas anônimas contra gestora do Theatro Municipal motivam processo

Às vésperas de deixar administração do teatro, Odeon aciona Justiça contra mensageiro por difamação

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São Paulo

No dia 15 de fevereiro de 2019, as câmeras de segurança da Praça das Artes registraram as imagens de um homem com idade entre 50 e 60 anos, vestindo roupa preta, na recepção do local. Ele deixou com a recepcionista uma carta endereçada a Carlos Gradim, presidente do Instituto Odeon, instituição que administra o Theatro Municipal de São Paulo, ali sediada.

Em quatro páginas cheias de pontos de exclamação e com diversos erros de português, a missiva —assinada por João do Theatro, um pseudônimo de identidade desconhecida— chamava os funcionários do Odeon de “víboras peçonhentas” e os acusava de cometer atrocidades contra “nossos colegas [do teatro] coitados que nada podem fazer”.

Segundo a carta, a administração do Municipal pelo Odeon seria fraudulenta, incluindo um “festival sem limites de planilhas estranhas” e “notas fiscais tão verdadeiras quanto notas de R$ 3”. As acusações se dirigiam também ao objeto do teatro em si –os figurinos seriam lavados nas pias da casa, numa limpeza completa pelo “uso sistemático de vodca para disfarçar cheiro de suor estragando os figurinos raros e caros para depois falarem que foi na lavanderia”.

SÃO PAULO, SP, 17.08.2012 - Fachada do Theatro Municipal que tem iluminação naturalista. O Theatro Municipal de São Paulo é um dos mais importantes teatros do Brasil e um dos cartões postais da cidade de São Paulo. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress) - Folhapress

Aquela foi a primeira de cinco cartas assinadas por João do Theatro, entregues entre fevereiro e outubro de 2019. Nas seguintes —que passaram a incluir a hashtag #foraodeon— as ofensas se estenderam e miraram também o então secretário de Cultura, Alexandre Youssef, e o prefeito, Bruno Covas. Juntos com Carlos Gradim, são chamados de “Trio Calafrio”.

Obtidas há poucos dias, às vésperas de o Odeon se desligar em definitivo da administração do Municipal depois de um turbulento processo, as cartas foram entregues em um momento no qual a prefeitura estudava romper o contrato de mais de R$ 550 milhões com o instituto, que valeria até 2021.

O motivo do rompimento foi uma investigação que apontou problemas nas contas do Odeon e o uso indevido de cartões de crédito corporativos, alegações que o instituto sempre contestou.

As cartas de João do Theatro motivaram a abertura, em março, de uma queixa-crime do Odeon contra o homem que entregou a primeira delas, Valter Scheiba Pinto Ribas Neto. Ele é acusado de difamação, num processo que tramita no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Sua identidade foi descoberta de forma insólita. No inquérito instaurado pela polícia acerca das mensagens, duas então funcionárias do Municipal foram chamadas para depor. Uma delas, Ivani Rodrigues Umberto, à época coordenadora do acervo de figurinos, compareceu à delegacia acompanhada de Ribas Neto.

Naquele momento, o delegado notou a semelhança do acompanhante de Umberto com as imagens do homem registradas pelas câmeras de segurança da Praça das Artes alguns meses antes.

Ribas Neto —que não havia sido intimado nem citado no depoimento da outra funcionária, e que não tem vínculos aparentes com o Odeon ou com o Municipal— então confessou ter entregue a primeira carta, mas disse desconhecer seu conteúdo e não saber quem a tinha escrito.

Ele afirmou ter agido só como mensageiro de “pessoas que estavam na Câmara dos Vereadores da cidade de São Paulo”, segundo o processo.

Ribas Neto se diz professor universitário no processo do Odeon, mas uma busca na internet não vincula seu nome a qualquer universidade, e sim à Reval Brasil, uma empresa de comércio de alimentos da qual aparece como sócio.

Ele está envolvido em seis outros processos e, numa ação de 2015 que moveu contra uma pessoa que tentou lhe vender um apartamento do qual não era a proprietária, ele se apresenta como comerciante. Não foi possível confirmar sua identidade numa ligação telefônica. Num email, a Reval Brasil disse desconhecer Ribas Neto.

Procurada, Ivani Rodrigues Umberto também não se manifestou.

O processo contra o mensageiro é o epílogo do complicado desligamento do Odeon, a organização social que administra o Municipal desde 2017 —o último dia do contrato é 30 de setembro, afirma Jimmy Keller, diretor de operações financeiras do Odeon.

A rescisão do contrato foi oficializada pela prefeitura na segunda quinzena de maio, após uma série de idas e vindas que já duram quase dois anos e que marcaram os mandatos de três secretários municipais de Cultura.

No fim de 2018, André Sturm, então secretário da Cultura, pediu a rescisão do contrato, acusando falta de transparência nas prestações de contas do Odeon à secretaria de Cultura.

No começo do ano passado, porém, o novo secretário da pasta, Alê Youssef, suspendeu o processo, mantendo a entidade no comando do teatro. Dias mais tarde, a secretaria instaurou um grupo de trabalho para avaliar a administração do instituto —as contas de 2018 foram reprovadas e as de 2017, aprovadas com ressalvas.

O Odeon apresentou recurso, que foi reprovado. Em janeiro deste ano, a diretora da Fundação Theatro Municipal, Maria Emília Nascimento Santos, determinou a rescisão do contrato —o instituto recorreu, mas a secretaria de Cultura indeferiu o pedido e o contrato foi rescindido em 18 de maio, já com Hugo Possolo como secretário.

Durante todo esse processo, o Odeon se defendeu em diversas ocasiões e negou irregularidades, afirmando que as acusações se devem a "divergências de entendimento" entre as partes.

Das irregularidades apontadas em 2018, por exemplo, Keller diz que o instituto sempre obteve aprovação do Municipal antes de tomar alguma medida. Neste ano, acrescenta o diretor financeiro, a fundação reconheceu que nunca houve dano ao erário por parte do instituto.

Até agora, ainda não se sabe qual organização social vai gerir o Municipal após a saída do Odeon. A Secretaria Municipal de Cultura afirma que o edital para contratação deve ser publicado ainda em agosto, e que a nova administradora "terá tempo para organizar e dar sequência à programação adequada ao período pós-quarentena".

ENTENDA A CRISE NO MUNICIPAL

Jul.2017
Instituto Casa da Ópera vence concorrência para gerir o Municipal; Instituto Odeon também participou do processo

Ago.2017
Ministério Público aponta possível irregularidade na concorrência; Cleber Papa, diretor do Municipal desde o início daquele ano, tinha relação indireta com a Casa da Ópera

Set.2017
Casa da Ópera é desclassificada na concorrência por falta de documentação; Odeon assume a casa e demite Cleber Papa da diretoria artística do teatro

Nov.2018
Diretor financeiro da Odeon grava conversa com André Sturm, na qual o secretário da Cultura condiciona a aceitação de prestações de contas do instituto ao anúncio de que o grupo deixaria a casa; Sturm é acusado de chantagem

Dez.2018
Secretaria de Cultura, ainda sob gestão de Sturm, quebra contrato com o Odeon e dispensa os serviços do instituto

Jan.2019
Sturm é exonerado de seu cargo; no seu lugar, assume Alê Youssef, que suspende a dispensa do Odeon

Fev.2019
Secretaria de Cultura cria grupo de trabalho para avaliar as contas do Odeon; primeira carta de João do Theatro é entregue

Jun.2019
Grupo de trabalho recomenda que a Fundação Theatro Municipal reprove as contas de 2018 do Odeon; a fundação acata e dá prazo legal de resposta para 28 de setembro

Jan.2020
Direção da Fundação Theatro Municipal de São Paulo determina rescisão do contrato; Odeon recorre, mas recurso é indeferido

Mar.2020
Odeon abre queixa-crime por difamação contra mensageiro

Mai.2020
Contrato é oficialmente rescindido e Odeon começa processo de desmobilização, que dura aproximadamente três meses

Set.2020
Saída prevista do Odeon da administração do teatro

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