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Chadwick Boseman escondeu a dor para hackear Hollywood

Ator de 'Pantera Negra' viveu ícones negros no cinema entre sessões de quimioterapia e cirurgias secretas

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Chadwick Boseman

O ator Chadwick Boseman, astro do filme 'Pantera Negra', em retrato de dois anos atrás Brinson+Banks/The New York Times

Esconder a dor para se tornar eterno. O ator Chadwick Boseman não haveria sido contratado para viver Pantera Negra se o estúdio que o empregou soubesse que ele tinha câncer.

A maior indústria de entretenimento do planeta é o que o nome diz, uma indústria. Investidores e acionistas cobram das empresas planejamento e rigor. Há sete anos, a Marvel lançava, com “Homem de Ferro 3”, a segunda fase de seus filmes de heróis num universo compartilhado.

Já pensando na terceira fase, um estudo encomendado pela firma cravou que a trajetória do personagem Pantera Negra nos cinemas era um investimento de alta liquidez a longo prazo. Nos Estados Unidos, o “black money” havia se estruturado de forma efetiva, e a demanda por um herói negro já se tornara evidente.

Havia chegado a hora de o povo preto sentir o mesmo que brancos sentiram ao ver Christopher Reeve, olhos azuis e penteado pega-rapaz, voar pelos céus de Metrópolis como o Super-homem. Havia chegado a hora de Pantera Negra ganhar vida. Mas quem seria o Christopher Reeve negro?

Kevin Feige, chefe dos estúdios Marvel, maestro do ambicioso projeto que exigia compromisso de atores por muitos anos e filmes, não teve dúvidas. Chadwick Boseman tinha talento e carisma o suficiente para ser o rei de Wakanda. E não duvidou de saúde e vitalidade —o seguro de vida dele custou um quinto do valor de outros atores do infinito elenco de heróis da Marvel.

Uma lenda do sudeste da África conta que um guerreiro picado por uma cobra venenosa tem de, ante os orixás, escolher entre se recolher para morrer rezando ou liderar sua tribo na colheita. Escondendo os efeitos do veneno, o rei então fez o trabalho. Salvou sua tribo, recolheu a melhor colheita de todos os tempos e se tornou um herói, exemplo para futuras gerações.

Outra lenda, do norte do continente africano, narra a visita de uma deusa a um rei moribundo em sua cama. Ela oferece a ele um último pedido. O rei pede “quero poder ficar de pé e me tornar um exemplo para o meu povo”.

O jovem ator Chadwick Boseman sabia o que estava ali em jogo. Algo maior que a vida e a morte. "Pantera Negra", o filme, se tornou a maior bilheteria de um filme de super-herói solo, faturando US$ 1,3 bilhão. O super-homem havia sido superado. “Wakanda forever” passou a fazer mais sentido do que “para o alto e avante”.

Boseman anunciou que a partir de então só assinaria novos contratos com um uma condição. De que metade da equipe, em todas as áreas de produção, fosse composta de negros. E espantou o mundo pela primeira vez quando anunciou que não faria a continuação do filme da Marvel. Um ano depois, espantaria a todos pela segunda vez, aparecendo muito abaixo do peso em suas redes sociais.

Paul George, jogador dos Los Angeles Clippers, time de coração de Boseman, se encontrou com o ator no início do ano. Ao comentar a aparência do astro, ouviu “me tornei vegetariano, quero uma vida melhor para mim”, ele disse sorrindo, já morrendo de dor.

Vinha trabalhando, sendo o Pantera Negra, por quatro anos, todos os dias fazendo o seu trabalho depois de sessões secretas de quimioterapia e ocasionais e ainda mais secretas intervenções cirúrgicas. Seu corpo era seu. Não da empresa para a qual trabalhava. Não da mídia. Não do público. Seu. E ele o pôs a serviço de seu ofício. De sua ancestralidade e eternidade.

Foi na África de Wakanda que, milhares de anos atrás, a humanidade inventou isso de representar seus heróis em esculturas e os adorar. E, adorando, os tornar eternos. Pantera Negra foi o primeiro boneco de um herói negro de uma geração. Garotos negros que, com um herói de cor em que se espelhar, passaram a ter mais chance de lutar para sobreviver num mundo que o tempo todo os quer fora dele.

Ao manter seu corpo propriedade privada, Boseman hackeou o sistema, não para se curar, mas para virar eterno, se perpetuar. Gente preta é obrigada desde muito cedo a tudo hackear. É questão de existência. Se não querem que existamos, arrumaremos um jeito de nos infiltrar na vida.

Há um ano, Boseman, já debilitado, ao subir ao palco para receber o prêmio do sindicato dos atores, o SAG, dado ao elenco de Pantera Negra, ele se referiu à juventude, lembrando Nina Simone, outra que, hackeando, se eternizou.

“Ser jovem, talentoso e negro, que lindo sonho precioso. Em todo o mundo, existem bilhões de meninos e meninas jovens, talentosos e negros. Devemos começar a dizer a nossos jovens que há um mundo esperando por você, que a missão está só começando. Há horas em que olho para trás e sou assombrado pela minha juventude. Mas minha alegria hoje é poder dizer sou jovem, talentoso, e negro”, ele disse naquela ocasião.

O artista é, por definição, um herói neste mundo cheio de vilões de gibi. O artista negro, um super-herói. Um artista negro que se mantém firme para interpretar um herói negro é um exemplo. Chadwick Boseman se manteve firme até garantir sua participação num dos filmes de maior bilheteria da história do cinema. No fim do filme, quando tudo parece estar perdido, o Pantera Negra ressuscita e surge de um portal gritando “Yibambe”.

Que, em língua xhosa, falada no Zimbábue e na África do Sul, quer dizer justamente “se manter firme”. A força e a compreensão de texto com que o ator diz a palavra é o único momento verdadeiramente humano do filme. Ou super-humano. Firme, jovem, talentoso, negro e um exemplo.

Erramos: o texto foi alterado

"Pantera Negra" se tornou a maior bilheteria de um filme de super-herói solo, não a maior do subgênero. Na lista geral, o longa fica atrás dos quatro títulos da saga "Vingadores", que reúne diversos personagens da Marvel. O texto foi corrigido.​

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