Entenda a nova onda de tatuagens com tinta preta e aflição na ponta da agulha

Na estética 'blackwork', rabiscos negros violentos lembram estilhaços e cobrem grande parte do corpo

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A modelo Alyssa Ono

A modelo Alyssa Ono Ale Ruaro

São Paulo

Caveiras, adagas, corações, águias, âncoras, caravelas, cobras e ferraduras. Quem entra num estúdio de tatuagem provavelmente vai encontrar um catálogo com os tradicionais desenhos associados à arte de marcar o corpo. É a velha iconografia saída da loja de um tatuador americano conhecido como Sailor Jerry, que difundiu tais ilustrações durante a Segunda Guerra estampando marinheiros em Honolulu, no Havaí.

Muito popular até hoje, em especial na cidade de São Paulo, a vertente da tatuagem conhecida como tradicional tem passado a dividir espaço no corpo dos clientes com trabalhos de estética radicalmente oposta.

Braços pintados de preto, pinceladas cobrindo as pernas, riscos invadindo o rosto e linhas contornando as costas compõem hoje um novo panorama da tatuagem, que ganha traços cada vez mais abstratos.

Saem de cena os desenhos escolhidos num catálogo ou na “folha de flashes” —em que artistas reúnem ilustrações prontas para serem tatuadas— e entram formas e texturas feitas com pigmento preto, não raro executadas sem o decalque aplicado no corpo antes de a máquina ser ligada.

As sessões, contam os participantes, remetem ao processo psicanalítico –os tatuadores escutam seus clientes e transformam as vivências em tinta indelével sobre a pele. Cada trabalho costuma ser único.

“Como meus desenhos têm uma característica de transtorno da mente, quase 50% dos meus clientes têm algum tipo de transtorno. Hoje mesmo tatuei uma pessoa com borderline”, diz Alexandre Volf, o Cavera, uma referência nacional do “blackwork”.

O estilo ocupa grandes partes do corpo com tinta preta chapada, às vezes com as extremidades da tatuagem terminando em formas pontiagudas que lembram estilhaços, muitas vezes aplicadas sobre o rosto.

Volf diz acreditar que sua tatuagem escura e de pegada melancólica é como uma libertação para essas pessoas, porque ajuda a expressar no corpo um pouco da confusão mental que enfrentam no dia a dia.

Inspirado por referências distintas, que vão da vida de Van Gogh à estética de luz e sombras de bandas de metal pesado norueguês, ele também marca os clientes de seu estúdio em Curitiba com ilustrações de rostos esfumaçados.

Embora a tolerância à dor varie de pessoa para pessoa, o “blackwork” se traduz em sessões em geral mais doloridas, já que os profissionais usam máquinas com 23 ou 35 agulhas para injetar a tinta, em oposição às 15 usadas num desenho tradicional.

Como as tatuagens em preto costumam ser grandes, o número maior de agulhas serve para pintar uma área mais extensa da pele em menos tempo —e também para dar o desejado efeito de pincelada, conta o tatuador Alexandre Anami.

Viajando pelo Brasil, Anami atende de cinco a dez pessoas por mês, em igual proporção de homens e mulheres. As sessões, de duas horas e meia em média, custam R$ 650.

Modelo é tatuada no estilo blackwork
Modelo é tatuada no estilo blackwork - Ale Ruaro

Tatuadores dizem tentar minimizar o desconforto de uma tatuagem “blackwork” para os clientes. Fora do Brasil, contudo, o culto à dor foi elevado à categoria de ritual por expoentes famosos do estilo –o italiano Valerio Cancellier, o britânico Cammy Stewart e o alemão Phillip “3Kreuze”.

Há quatro anos, o trio criou o “Brutal Black Project”, em que fazia sessões de até quatro horas para tatuar simultaneamente e de modo agressivo um voluntário.

O processo era embalado num discurso meio infantil de superação, e o resultado —peitos e rostos riscados de preto—, apresentado como um gesto de repúdio à indústria da tatuagem, que eles diziam ter ficado comercial demais.

A ascensão do “blackwork” na última década se deu em paralelo ao crescimento de uma outra estética também inovadora, só que mais delicada e menos dolorida. Tatuadores com formação acadêmica passaram a oferecer desenhos abstratos de linhas e rabiscos que acompanham os movimentos do corpo. É permitido usar cor, mas não muita, e de preferência o vermelho.

“Quando eu falava nos estúdios de tatuagem que era aluno de artes plásticas na universidade, aquilo não era visto com bons olhos”, diz Taiom, artista plástico formado pela Universidade de Brasília que tatua desde 2003.

“Na época em que comecei minha formação como artista, não era comum ver tatuagem que não fosse tribal, comercial —estrelinha ou golfinho— ou oriental japonês.”

Segundo ele, a tatuagem estava engessada numa tradição de meados do século passado e não tinha incorporado, até os anos 2000, referências contemporâneas, como a estética do grafite, das colagens e da serigrafia. Havia certa resistência dos próprios tatuadores, diz Taiom.

O atraso foi compensado por uma nova leva de clientes, interessados em marcar o corpo com desenhos que em nada se pareciam com os dos marinheiros americanos. Ou seja, a inovação foi forçada de fora para dentro.

Tem a ver com essa mudança a popularização da tatuagem, impulsionada pelo seriado “Miami Ink”, pela facilidade de acesso aos equipamentos por parte dos profissionais e pelo fato de os jogadores de futebol aparecerem com os braços forrados de tatuagens, ele acrescenta.

Outro fator, segundo os tatuadores, foi a explosão do Instagram: a rede social permitiu ao público o acesso instantâneo às inovações da técnica em curso em outras partes do mundo.

Uma das referências mais fortes dessa tatuagem do século 21 é o veterano tatuador Yann Black, que começou na França e hoje atende no Canadá. Suas criações misturam quadrados e linhas pretas com corações e círculos vermelhos.

Outro nome conhecido é o brasileiro Jun Matsui, que estudou em Tóquio nos anos 1990. Influenciado por grafismos étnicos, ele abusa da tinta preta em ornamentos gigantes feitos à mão livre sobre a pele, quase sempre de homens.

Visto por clientes como um mestre da anatomia, Matsui foi um dos mentores de Rosa Laura, que deu seus primeiros passos no ofício tatuando amigos com linhas e formas geométricas enquanto cursava arquitetura na Universidade de São Paulo.

Laura afirma nunca ter feito tatuagens figurativas. Trabalhando em Nova York desde o ano passado, diz que suas criações são inspiradas na estética mecânica das máquinas de xerox, explorando as distorções das imagens.

“Um trabalho abstrato não quer dizer que não vá contar uma história ou reforçar um traço da personalidade da pessoa”, argumenta.

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