Escritores africanos veem queda de estátuas como uma reação violenta à violência

Intelectuais do continente também alertam para o risco de romantizar um passado que não existiu de fato

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‘Napoleon Leading the Army over the Alps’, tela do artista americano Kehinde Wiley, de 2005

'Napoleon Leading the Army over the Alps', tela do artista americano Kehinde Wiley, de 2005 Reprodução

São Paulo

Montado num cavalo galopante típico de obras que construíram a iconografia do domínio branco, um negro vestindo roupa esportiva subverte essa lógica racista.

Os retratos do artista americano Kehinde Wiley emulam pinturas dos séculos 17 e 18 para confrontar a narrativa canônica, carregada de ideologia colonialista, e elaboram um novo vocabulário de poder antes exclusivo de um grupo racial privilegiado.

Wiley diz retratar não só “corpos negros, mas novos olhares sobre eles e a história”, o que põe sua arte na vanguarda do debate decolonial que ganhou o mundo com os protestos antirracistas do movimento Black Lives Matter depois do assassinato de George Floyd, em maio.

Desde então, centenas de estátuas e monumentos de soldados confederados, traficantes de escravos e colonizadores foram derrubados em várias partes do planeta.

A guerra às estátuas faz pressão por novas visões de velhas verdades históricas. Nesta semana, por exemplo, o Museu Britânico retirou do pedestal o busto de seu fundador, Hans Sloane, por seus vínculos com o colonialismo.

Outro museu, o novo Victoria&Albert Dundee, na Escócia, mudou as informações atreladas ao acervo, destacando a relação dos objetos com a escravidão e apropriação cultural. O debate sobre a pilhagem de objetos de territórios colonizados e o retorno das peças à origem também tem se intensificado agora.

Rever e reformular discursos hegemônicos não é tarefa simples, diz o escritor moçambicano Mia Couto, que participa do Fronteiras do Pensamento, neste ano em plataforma virtual, com outros dois autores nascidos no continente africano —Isabela Figueiredo e Alain Mabanckou.

“Quando conquistamos a independência, em 1975, houve um derrube de símbolos portugueses. Em seu lugar, foram atribuídos nomes africanos”, ele conta. “Descobrimos com o tempo que esses africanos raramente correspondiam às qualidades que deles esperávamos. Grande parte se revelou personagens controversas, ditadores, gente que praticou crimes contra o povo.”

A história de uma dessas personagens é a base da última trilogia do autor. Ngungunyane, diz Couto, resistiu ao domínio português em Moçambique e apavorou parte da população que ali vivia antes.

“Ele se tornou um herói celebrado como resistente nacionalista. Essa celebração adotada no discurso oficial só foi possível porque houve uma simplificação de um personagem complexo e contraditório que lutou contra os portugueses”, diz ele, questionando narrativas antagonistas que “se dizem históricas mas que nada têm de neutralidade”.

“O passado foi inventado tanto por portugueses, que construíram a narrativa colonial, como por moçambicanos, que construíram a nacionalista”, diz Couto, que romanceou a vida do imperador escravagista na série encerrada com “O Bebedor de Horizontes”. “A narrativa nacionalista deu a Ngungunyane grandeza imperial para responder ao discurso colonial que negava qualquer brilho a africanos.”

Couto, que diz ter celebrado o derrube de estátuas antes, conta que hoje se pergunta se “o melhor não seria termos construído as nossas outras estátuas junto dessas que queríamos apagar”. Segundo ele, a literatura sugere que não se pode exigir pureza da história. “Somos feitos de dimensões contraditórias. E é na aceitação dos conflitos que se descobre a verdade.”

Alain Mabanckou, professor de literatura da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, afirma que confrontar regimes visuais e narrativos pode ser mais eficiente do que os almejar destruir.

“A descolonização aconteceu apenas no papel porque boa parte da África continua ligada a seus antigos colonizadores”, diz ele, que acaba de lançar “Black Bazar” no Brasil.

“Na descolonização, ficamos felizes, dançamos, cantamos e pensamos que seríamos livres e usaríamos nossas riquezas. Mas há novas lideranças envolvidas com a exploração dos territórios.”

Segundo Mabanckou, a colonização segue presente. “Enquanto a África tiver regimes ditatoriais, a colonização será um dos principais tópicos da literatura produzida por escritores africanos”, diz.

“A literatura denuncia e explica o colonialismo, mas também ajuda a reescrever a história contada pelos europeus, agora contada pelos africanos para os libertar dessas amarras”, diz Mabanckou, que deve falar do tema em sua conferência aos brasileiros.

“Precisamos reescrever nossa história de modo pacífico, e não com raiva. Confrontar, e não destruir, porque a história precisa de dois lados para explicar o mundo”, diz. “Não podemos cair na tentação de adoçar nosso lado da história para que se pareça melhor, porque foi isso o que o mundo Ocidental fez.”

A escritora e jornalista Isabela Figueiredo, autora de “Caderno de Memórias Coloniais”, especula sobre os motivos pelos quais a reprodução das estratégias de desmonte da herança colonial já usadas nos anos 1960 e 1970 podem não ser as mais efetivas.

“Pondero a hipótese de o problema estar na própria linguagem da violência, que é a que conhecemos. A resposta à violência tem sido violenta”, diz ela, que nasceu na capital moçambicana antes chamada Lourenço Marques e depois rebatizada de Maputo.

“Compreendo a explosão destrutiva da revolta e seu lado criativo, porque não há nada mais expressivo nem mais marcante do que a brutalidade. Mas creio que responder à violência com violência não tem mudado o paradigma civilizacional”, diz Figueiredo.

Ela afirma ter tomado consciência do colonialismo e decidiu escrever seu livro de memórias com uma linguagem dura para “conseguir bater na cara das pessoas com o que é o racismo”.

“A literatura precisa ser corajosa, precisa ter as costas largas e aguentar levar porrada”, diz ela. “A arte trabalha no campo do simbólico, portanto ela tem o dever de derrubar essas estátuas.”

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