Muro que Trump defende foi parar no telhado do Met pelas mãos de um artista

Escultura 'Lattice Detour', do mexicano Héctor Zamora, cria superfície vazada como crítica a fronteiras e divisões

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São Paulo

Um muro curvo, com cerca de 33 metros de comprimento e três de altura, construído com blocos de terracota, ocupa o terraço do Metropolitan, em Nova York, reaberto para o público no fim da semana passada.

O espaço não tem uma vista qualquer. No topo do museu, os olhos se voltam para o Central Park no primeiro plano e para o skyline da metrópole no segundo —uma experiência quase oposta a das salas herméticas do prédio da instituição. Mas ao contrário do que se espera de um muro, “Lattice Detour”, do artista mexicano Héctor Zamora, não mina esse cenário cobiçado —as frestas abertas da parede, criadas com tijolos ocos, criam uma superfície que dialoga com o entorno em vez de só cortar o espaço ao meio.

Imagem mostra muro com 33 metros de comprimento e três de altura, feito com tijolos ocos. O sol atravessa a superfície, criando feixes de luz no chão.
Obra ‘Lattice Detour’, de Héctor Zamora, no cobertura Metropolitan, em Nova York - Hiroko Masuike/The New York Times

“Isso é um conceito que aprendi na minha própria cidade [Cidade do México], e no Brasil [onde morou por uma década] muito mais. É a utilização do cobogó como um muro vazado, que chega a ser um conceito paradoxal, uma contradição. É um muro que divide, mas que, ao mesmo tempo, é permeável ao ar, à vista, à luz do sol”, afirma o artista plástico.

O convite para participar da série de trabalhos criados para o lugar veio no ano passado, num mundo ainda distante da pandemia de coronavírus. Era uma atmosfera política mais tomada por discussões como a da demarcação de fronteiras, que continua em pauta com as eleições americanas se aproximando.

“O exemplo mais concreto da obra é a relação de meu país com os Estados Unidos, e que não é nova. O Trump está bombando com seu discurso político, que sabemos, que é mais um show do que outra coisa, porque esse muro já existe há muito tempo”, afirma Zamora. “Acho importante fazer um comentário concreto e desafiante ante a uma realidade que, infelizmente, políticos como Trump e Bolsonaro estão impondo dentro do planeta.”

A ideia de fronteiras, no entanto, se estende a exemplos do que o artista entende como exclusões que não necessariamente se traduzem em um objeto físico. É o caso, por exemplo, do racismo e da violência policial, que se tornou um tema ainda mais latente com a morte do americano George Floyd e com a onda de manifestações como consequência do assassinato. “A discriminação sempre, no final, é um muro, uma divisão.”

A nacionalidade mexicana aparece em outros elementos da peça —para além da origem do próprio artista. Os tijolos, por exemplo, foram comprados na região norte do país, em Monterrey. Os pedreiros responsáveis por erguer o muro no museu também eram latino-americanos —dois deles, mexicanos.

“Sem esse pedreiro, sem esse conhecimento manual, sem a expertise do trabalho físico manual, não existiria nada. E é isso também que tem muita ressonância nos Estados Unidos”, afirma Zamora.

A presença dos operários, que nessa obra é tida como fundamental, mas menos aparente para o público, aparece em outros trabalhos do artista plástico de maneira ainda mais latente. Numa performance de oito anos atrás, ele lembra, eles arremessavam tijolos no espaço da galeria Luciana Brito, em São Paulo.

“Lattice Detour”, que o próprio artista traduz como “Trama de Desvio”, estava prevista para ser exposta em abril deste ano, mas foi adiada pela pandemia de coronavírus. O cenário atual, que permite a reabertura, mas ainda está distante de ser solucionado no mundo todo, trouxe outras implicações ao trabalho.

Por um lado, a peça foi pensada para ser vista por uma quantidade de público difícil de imaginar nos dias atuais — 3.000 pessoas chegam a passar pelo terraço num único dia na temporada prevista, que duraria até novembro.

Por outro, a obra passou a refletir, na visão do artista, tensões criadas pela quarentena. “Essa pandemia só acentuou as divisões. O pobre está lá fora na rua, trabalhando, e ele não teve a permissão de fazer quarentena. Ele ficou trabalhando para que nós, que tínhamos a possibilidade econômica de fazer a quarentena fizéssemos”, diz Zamora, sobre uma das conotações que o trabalho ganhou.

Durante os meses que o museu ficou fechado, plantas cresceram desordenadamente no terraço, único lugar aberto do prédio, que já hospedava parte da obra construída entre fevereiro e março.

O fenômeno lembra um processo similar ao que aconteceu no trabalho “O Abuso da História”, que o artista fez no antigo Hospital Matarazzo, em São Paulo, há seis anos. Depois de lançar vasos com plantas do primeiro andar do prédio, boa parte delas criou raízes no solo onde caiu.

Por causa da quarentena, Héctor Zamora ainda não conseguiu visitar sua obra pronta no Metropolitan —e também não pode ver “Zig Zag”, pensada e produzida durante a pandemia e exposta ao público em Paris no mês de junho.

A obra é uma espécie da “labirinto penetrável”, com cobogós, que se aproxima mais da ideia de criar um espaço lúdico do que da intenção política de “Lattice Detour”.

“Ela responde a uma realidade que estamos todos procurando. Queremos achar algo agradável e divertido, que nos convidasse a desfrutar do espaço público do qual fomos excluídos por algum tempo.”

As duas obras são feitas praticamente do mesmo tipo de material “cálido, vermelho alaranjado, tão comum no Brasil”, diz Zamora. Um material que é também popular, simples e humilde, acrescenta o artista.

Mesmo diante da impossibilidade de ver a obra —ele espera viajar ainda em setembro— e da diminuição do público previsto, Zamora não se sente prejudicado pela pandemia.

“O fato de ter adiado a abertura, e ela acontecer no momento em que o Metropolitan abre, terminou dando uma série de conotações ao trabalho, que, nesse sentido, tem uma leitura global”, afirma. “Eu
espero que alguém, com luvas, se atreva a dar a mão de um lado ao outro do muro.”

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