Descrição de chapéu The New York Times

'Não estou nem aí', diz jovem que vai a festas ilegais em meio à pandemia

Europa vive onda de eventos irregulares, nas quais multidões ignoram coronavírus e priorizam diversão

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Jovens aglomerados em festa se abraçam. Luzes de neon azuis iluminam local, com árvores

Uma festa em Berlim, 1º de agosto de 2020. A festa foi organizada por meio do aplicativo de mensagens Telegram Gordon Welters/The New York Times

Alex Marshall Thomas Rogers Constant Méheut
The New York Times

Boates e clubes em toda a Europa estão fechados. Mas isso não quer dizer que os festeiros do continente andem ficando em casa.

À medida que os lockdowns do coronavírus vão sendo afrouxados, raves ilegais estão cada vez mais populares. Todo fim de semana ocorrem eventos ao ar livre reunindo centenas de pessoas, ou em alguns casos milhares, organizados através de redes sociais e aplicativos de mensagens. Causam dores de cabeça à polícia e a legisladores, gerando discussões e pânico na mídia noticiosa.

Tom Wingfield, professor da Escola Liverpool de Medicina Tropical, disse que não há estudos médicos sobre o coronavírus e festas ao ar livre, mas que a provável falta de distanciamento social cria riscos de transmissão. Juntar álcool e drogas ao coquetel pode exacerbar riscos, segundo ele.

Alguns países estão tentando reabrir as boates. A maioria das regiões da Suíça autorizou a reabertura desses locais em junho, sob a condição de que registrem os dados de contato dos frequentadores (depois que alguns deram informações falsas, algumas regiões começaram a exigir a apresentação de documento de identidade).

Na Espanha, os clubes de Barcelona abriram as portas no final de junho, mas foram fechados outra vez algumas semanas mais tarde, quando o coronavírus voltou a aumentar na cidade.

Na maioria dos países, a ideia de pistas de dança lotadas é demais para ser cogitada neste momento. Muitos operadores de boates receiam que serão os últimos tipos de empresas autorizadas a reabrir.

Enquanto isso não ocorre, milhares de pessoas vêm fazendo festas em segredo, desafiando os riscos e as reações negativas. No primeiro fim de semana de agosto, repórteres do New York Times participaram de três eventos, em Berlim, Londres e nos arredores de Paris. Eis o que vimos.

Berlim: 'Festas são uma parte enorme da identidade da cidade'

Era meia-noite de 1º de agosto, e a rave num campo na periferia nordeste de Berlim estava apenas começando. Perto de um toca-discos conectado a um gerador, um DJ de bermuda tocava um misto quente de música house e techno. Cerveja era vendida numa barraca montada ao lado, e luzinhas coloridas estavam fixadas às árvores.

A multidão de cerca de 200 pessoas crescia a cada minuto. Apesar do cartaz orientando a distância de pelo menos 1,5 metro entre elas, a pista de dança estava lotada, e ninguém usava máscara.

Árvores iluminadas por luzes neon coloridas. Bosque repleto de multidão
Uma festa em Berlim, 1º de agosto de 2020. Em todo o continente, multidões estão se aglomerando em eventos organizados nas redes sociais e aplicativos de mensagens, apesar dos riscos e das reações adversas - Gordon Welters / The New York Times

Com o fechamento dos clubes de Berlim, imposto pela pandemia, tendo se estendido por todo o verão, festas ilegais como essas surgiram para preencher a lacuna. A maioria é gratuita e acontece em locais isolados, para escapar da atenção da polícia. Muitas são divulgadas pelo Telegram, um aplicativo de mensagens sem criptografia.

Para chegar à festa de 1º de agosto, as pessoas tinham de se orientar por um mapa enviado pelo aplicativo e caminhar 15 minutos da estação de trem mais próxima, passando por uma área industrial vazia.

O número de novas infecções por coronavírus se mantém relativamente baixo na Alemanha, mas começou a subir novamente nas últimas semanas e festas como esta viraram um ponto de discórdia numa discussão ampla sobre se os jovens estão pondo em risco o muito elogiado êxito do país na luta contra o vírus.

A persistência das festas enfurece alguns políticos e autoridades sanitárias e complica os esforços dos líderes do cenário de clubes de Berlim para fazer pressão por eventos oficialmente sancionados.

Algumas das pessoas nessa festa argumentaram que as raves são uma opção muito necessária para as pessoas se descontraírem após o período de isolamento. Elas observaram também que o risco de contágio é menor em eventos ao ar livre.

Os regulamentos do coronavírus em Berlim permitem encontros de até mil pessoas em parques, mas apenas se forem observadas as medidas de distanciamento social e sem venda de bebidas alcoólicas.

Posicionada entre a tenda da cerveja e a pista de dança, Paul Evina-Ze, de 32 anos, desenhista americano residente em Berlim, disse que “as festas são uma parte enorme da identidade da cidade, não se pode querer que as pessoas esperem dois anos”. E afirmou também que o vírus não o preocupa. “Acho que se eu pegar, não vai me afetar.”

Sua namorada, Valta Klints, de 25 anos, acha que a cidade deveria dar o exemplo, autorizando raves sob condições controladas. “Outras pessoas estão olhando para Berlim como exemplo."

Uma reação pública contra os ravers da cidade começou em maio, quando manifestantes se reuniram em embarcações no principal canal de Berlim para expressar apoio aos profissionais afetados pelo fechamento dos clubes.

O protesto virou uma festa aquática com cerca de 3.000 participantes, e os barcos foram parar diante de um hospital onde estavam sendo tratados pacientes com Covid-19.

Houve outra onda de críticas no final de julho, quando a polícia desfez uma rave com cerca de 3.000 participantes em Hasenheide, um parque da cidade.

A capa da edição da primeira semana de agosto da revista alemã Der Spiegel trouxe uma foto da festa em Hasenheide, sob a manchete “Estamos sendo insensatos demais?”.

Entrevistado pela revista, o deputado federal Karl Lauterbach, do Partido Social Democrata, de centro-esquerda, disse que as pessoas que participam de raves e desrespeitam as normas de distanciamento “precisam ser sancionadas com multas de centenas de euros”.

A polícia de Berlim intensificou sua presença nos parques, e, em entrevista de rádio com a emissora pública RBB, um porta-voz disse que os policiais agora vão começar a intervir mais cedo, quando as festas estão apenas começando. Mas fez uma ressalva: “A polícia não tem como tomar o lugar do bom senso das pessoas.” (A polícia de Berlim não respondeu a um pedido de declarações para este artigo.)

Alguns políticos e algumas figuras de liderança no cenário dos clubes estão pedindo uma abordagem mais pró-ativa. A Comissão de Clubes, uma associação do setor, pediu às autoridades locais para disponibilizarem espaços públicos para organizadores de festas sob condições que assegurem o respeito pelas medidas de higiene.

A porta-voz da comissão, Lutz Leichsenring, disse que a festa no parque Hasenheide “sujou o nome” das raves, mas que a persistência delas mostrou aos políticos que usar a polícia para fechar as festas não vai resolver o problema.

Uta Reichardt, de 34 anos, disse na festa que é a favor da abordagem da comissão e que ficou decepcionada quando uma rave ao ar livre em que ela estava 15 dias antes havia sido fechada pela polícia.

Membro da Universidade da Islândia em visita a Berlim, Reichardt disse que permitir os eventos “enviaria um sinal a uma certa geração de pessoas na faixa dos 20 aos 40 anos de que sua cultura é valorizada”.

“Acho que neste momento é preciso tolerância de todas as partes”, ela disse.

Perto de Paris: 'Não estou nem aí'

Em tempos normais, a margem arborizada da Étang de la Haute Maison, uma lagoa a cerca de 20 quilômetros a leste de Paris, é um ponto cobiçado por pescadores à procura de carpas ou lúcios.

Mas uma turma diferente se reuniu na noite de 1º de agosto nos bosques à beira d’água. Eram cerca de 400 jovens que dançavam ao som da música techno que saía de alto-falantes, enquanto holofotes varriam a pista de dança.

As chamadas “festas livres”, como os eventos ilegais são conhecidos por aqui, vêm ganhando popularidade nos últimos meses. “É verdade que desde que o lockdown terminou, muito mais gente tem vindo às festas livres”, comentou Julien Faux, de 26 anos, frequentador regular das festas desde antes da pandemia. Ele dançava atrás do DJ na festa. Uma bandeira mostrando caveira e dois ossos, pendurada entre duas árvores, tremulava ao vento sobre sua cabeça.

Batizado de A Pirataria, o evento tinha todas as características de uma festa divertida. Uma página dedicada a ela no Facebook divulgou os nomes dos DJs que participariam, e os ingressos foram vendidos online.

A diferença é que o local da festa só foi divulgado por email menos de uma hora antes de A Pirataria começar. A informação foi acompanhada pela recomendação de se aproximar do local sem alarde e não revelar a ninguém onde era.

“O importante é a festa acontecer sem percalços”, dizia o email, especificando que as pessoas deveriam trazer máscaras e respeitar as medidas de distanciamento social. Mas isso não chegou a acontecer, na prática.

“As pessoas precisam dessa liberdade para fazer a festa”, comentou a universitária suíça Sarah Stalter, de 21 anos, que passava férias na França. À sua volta se espalhavam centenas de pessoas sem máscara, algumas delas apinhadas na pista de dança, numa clareira no bosque, e outras sentadas ao lado em grupinhos, com garrafas de bebida e cigarros de maconha passando de mão em mão.

“Não estou nem aí”, falou Stalter, dançando ao som da forte batida techno. “É claro que este vírus me mete medo, mas preciso curtir minha juventude.”

Bombeiro que participou da resposta ao coronavírus na França, Faux disse que já testemunhou em primeira mão os efeitos devastadores do vírus e que “as pessoas não estão levando a sério o risco de contaminação”. Porém, ele prosseguiu, “o desejo de fazer festa é mais forte que a doença”.

A proliferação de festas ilegais cria um desafio para as autoridades locais, que vêm oscilando entre a repressão rígida e simplesmente fazer vista grossa para o que está acontecendo.

“A polícia deixa rolar, até o momento em que muda de ideia”, comentou Antoine Calvino, cofundador da Socle, associação francesa de organizadores de raves. “É uma coisa totalmente aleatória. A gente gostaria de não estar nesta área cinzenta.”

Recentemente a polícia lançou uma blitz no Bois de Vincennes, o maior parque público de Paris, onde todo fim de semana pessoas com faroletes eram vistas percorrendo as trilhas à procura de raves nos bosques.

Os organizadores de A Pirataria tiveram seu sistema de som confiscado pela polícia numa festa anterior, segundo anúncio que postaram no Facebook em julho. Em uma troca de emails, um porta-voz da polícia local na cidade de Champs-sur-Marne, onde aconteceu a festa do dia 1º, disse que a polícia local não havia sido notificada do evento e que foi por esse motivo que ela não interveio.

“A polícia tem mais o que fazer do que ficar correndo atrás de jovens que ouvem música ao ar livre em bosques”, comentou Frédéric Hocquard, vice-prefeito de Paris responsável pelo turismo e a vida noturna.

Mas ele acrescentou que, dada a trajetória que a pandemia está seguindo —um recrudescimento lento no país levou a uma média de 1.300 casos novos por dia desde o início de agosto—, provavelmente vai levar meses para as boates serem reabertas, de modo que festas ao ar livre serão a única opção.

Hocquard disse ainda que a Câmara de Vereadores de Paris está trabalhando com a Socle sobre uma estrutura legal para a realização dos eventos e uma carta a ser seguida para garantir melhores condições de saúde. “Não é apenas um fenômeno do verão”, disse Hocquard. “Estamos assistindo a uma mudança.”

Londres: 'Favor não compartilhar'

Dois rapazes estavam numa rua no distrito de Tottenham, em Londres, pouco depois da meia-noite de 31 de julho, entre galpões de tijolinhos. Aparentavam estar perdidos.

“Você está indo à rave?”, perguntou um homem de sotaque de classe alta a alguém que passava ao lado. O mapa que haviam acabado de lhe mandar por WhatsApp era confuso e ele não estava conseguindo se localizar.

Multidão dança e filma festa com celulares. Árvores brilham com luzes neon rosa
Festa em Tottenham Marshes, no norte de Londres, em 31 de julho de 2020. Em todo o continente, multidões estão se aglomerando para eventos organizados nas redes sociais e aplicativos de mensagens, apesar dos riscos e das reações adversas - Alex Marshall via The New York Times

As informações sobre a festa que os rapazes procuravam tinham sido enviadas a um grupo no aplicativo de mensagens algumas horas antes. Para participar, era preciso informar uma conta em rede social, para que os organizadores pudessem verificar de quem se tratava. Os ingressos foram vendidos com antecedência e pagos pelo PayPal.

As mensagens no grupo de WhatsApp incluíam apelos por discrição. “Estamos protegendo nossa comunidade”, dizia uma delas. “Não compartilhe nossas informações com ninguém.”

“É como uma operação militar”, disse um dos rapazes de sotaque chique quando finalmente conseguiu decifrar o mapa. “Se as pessoas fizessem metade deste esforço para resolver o coronavírus, já teríamos superado o problema.”

Eles atravessaram uma passagem subterrânea e caminharam na direção do som de um bumbo. Suas bolsas foram revistadas rapidamente por seguranças e eles foram para uma clareira no bosque. Cerca de 300 pessoas dançavam ao som de música house. Luzes verdes e roxas iluminavam as árvores em volta.

O jornal The Guardian declarou que o Reino Unido está vivendo “um retorno chocante das raves”. Jovens britânicos criaram um pânico moral cerca de 30 anos atrás quando começaram a promover festas em locais secretos, alimentadas por ecstasy e acid house, um tipo de dance music então novo.

Atualmente, o pânico moral tem menos relação com drogas e mais com o coronavírus, com o receio de que as festas ilegais possam desencadear uma segunda onda. Seis mil pessoas participaram de uma festa em junho nos arredores de Manchester, no norte da Inglaterra, em que uma mulher foi estuprada e várias pessoas foram esfaqueadas. Festas vêm sendo promovidas em todo o país todos os fins de semana desde então, com menos relatos de violência. Mas as críticas de jornais e políticos têm sido intransigentes.

Alguns organizadores de festas procuram reagir à preocupação pública. “Foram tomadas medidas contra a Covid-19”, dizia uma mensagem no grupo de WhatsApp sobre o evento. “Haverá uma estação na entrada com máscaras e álcool em gel.” Esses materiais não estavam em evidência na chegada à festa, onde apenas cerca de uma dúzia de pessoas estavam de máscara. A maioria dos presentes não parecia preocupada com o coronavírus.

Os dançarinos estavam apinhados diante de um DJ. No meio da pista de dança improvisada, um homem alto, de olhos fechados, mexia os braços como se fossem asas de pássaro, enlevado pela música. As pessoas batiam papo e se abraçavam, selando amizades instantâneas. De vez em quando flutuava acima da pista um balão cheio de óxido nitroso, a droga preferida na festa.

Um dos presentes, arquiteto de 25 anos que pediu para não ter seu nome citado para evitar a possibilidade de ser expulso do grupo de WhatsApp, disse que frequenta raves ilegais há dois anos. “No ano passado o movimento foi menor”, ele comentou. “Acho que todo o mundo está louco para sair de casa neste momento.”

Os pubs e restaurantes reabriram as portas no país, ele comentou, mas ninguém em posição de autoridade está pensando na cultura da dance music. Ele próprio teria pensado duas vezes antes de ir a uma festa em um ambiente fechado ou num barco, mas festas ao ar livre não são um problema, em sua opinião.

Conforme a noite avançava, mais pessoas foram chegando, até um homem de muletas. Em dado momento alguém subiu numa árvore, e a música parou enquanto um segurança mandava a pessoa descer. Isso foi o mais perto que se chegou de um incidente no evento até que, por volta de 4h, três policiais chegaram com faroletes.

Eles saíram rapidamente, mas a presença foi o bastante para levar algumas pessoas a irem para casa.

A polícia voltou 20 minutos mais tarde —20 policiais dessa vez, que se postaram na trilha que levava à clareira. Eles haviam combinado com o DJ que a música poderia continuar até as 4h30, segundo um policial.

O agente de segurança disse que eles não prenderiam ninguém a não ser que o DJ se recusasse a parar. (A polícia de Londres não respondeu a perguntas enviadas por email sobre o evento e sua estratégia para lidar com festas ilegais.)

Às 4h30 o sol estava nascendo e a música de fato parou, antes de recomeçar para um último bis. Então a multidão se dispersou rapidamente.

Na noite seguinte os organizadores enviaram ao grupo de WhatsApp um novo mapa com informações sobre uma nova festa que aconteceria naquela noite, acompanhadas de um apelo, “favor não compartilhar."

Alex Marshall relatou de Londres, Thomas Rogers de Berlim e Constant Méheut de Champs-sur-Marne, França.

Tradução de Clara Allain.

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