Descrição de chapéu The New York Times

Olimpíada de 1964 fez de Tóquio uma vitrine da arte e do design do futuro

Símbolo da arquitetura moderna japonesa nasceu com profissionais engajados em satisfazer projeto ideológico

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Jason Farago
The New York Times

No fim de julho, os Jogos Olímpicos de Tóquio estariam chegando à metade. Velocistas, saltadores, arremessadores, halterofilistas e, pela primeira vez, skatistas, estariam reunidos na mais populosa cidade do planeta. Que o fã-clube de Simone Biles me perdoe, mas a modalidade que mais me entusiasmava é o handball.

Não pelo esporte, mas pelo ginásio. As partidas de handball seriam disputadas no Ginásio Nacional de Yoyogi, um marco da arquitetura moderna japonesa, projetado por Kenzo Tange. O traço que define o ginásio é sua cobertura, imensa e inclinada, formada por duas catenárias —ambos de aço estendidos entre pilares de concreto, como uma ponte pênsil— e hastes perpendiculares que se curvam desse eixo em direção ao solo.

Anos atrás, pedalando no parque Yoyogi, lembro ter feito uma pausa diante dos painéis soldados que formam a cobertura da ginásio, admirando as marquises de aço. O ginásio provavelmente seria a mais glamorosa das estruturas em uso na Olimpíada deste ano, anda que tenha sido construído mais de meio século atrás.

A pandemia do novo coronavírus forçou o primeiro adiamento de uma Olimpíada na era moderna –Tóquio 2020 não mudará de nome mas agora acontecerá em julho de 2021, se é que vai acontecer.

Mas espalhado pela capital japonesa está o legado de uma Olimpíada passada, os jogos de 1964, que coroaram a transformação da capital japonesa, de uma ruína devastada por bombardeios incendiários em megalópole ultramoderna. (A olimpíada, embora descrita como “de verão”, na verdade aconteceu no outono. Os organizadores consideraram que outubro era uma data melhor para os jogos em Tóquio do que o escaldante calor de julho.)

A primeira olimpíada de Tóquio serviu como baile de debutante para o Japão democrático do pós-Guerra, que se reapresentou ao mundo não só por meio do esporte mas também pelo design.

Os preparativos fizeram de Tóquio um imenso canteiro de obras. O escritor Robert Whiting, que serviu na Força Aérea dos Estados Unidos e esteve em Tóquio em 1962, descreve os martelos pneumáticos e britadeiras e seu “ataque avassalador aos nossos sentidos”. Os pedestres circulavam usando máscaras e protetores de ouvidos, e os trabalhadores bebiam em bares protegidos por cortinas de plástico grosso para impedir a entrada de poeira.

O Japão estava a apenas alguns anos de distância de se tornar a segunda maior economia do planeta, e a Olimpíada de 1964 foi concebida para servir como um desfile de gala celebrando o renascimento da economia e a honra reconquistada.

Os bondes que serviam a cidade foram aposentados e novas vias expressas elevadas foram construídas. Tóquio recebeu um novo sistema de esgotos, um novo porto, duas novas linhas de metrô e passou a sofrer com uma grave poluição.

Os cortiços e seus moradores foram impiedosamente removidos para abrir espaço a novas construções, algumas das quais grandiosas —como o irretocável hotel Okura, projetado em 1962 por Yoshiro Taniguchi (pai de Yoshio Taniguchi, o arquiteto do Museu de Arte Moderna de Nova York)— e muitas outras esquecíveis.

O novo “shinkansen”, ou trem-bala, disparou pela primeira vez no trajeto entre Tóquio e Osaka apenas uma semana antes da cerimônia de abertura. Só em 2008, quando veio a olimpíada da florescente Pequim, os jogos olímpicos voltariam a alterar de maneira tão profunda uma cidade e uma nação.

Tóquio já havia conquistado o direito de organizar uma Olimpíada, no passado. A cidade deveria sediar os jogos de 1940, depois do espetáculo nazista da Olimpíada de Berlim em 1936, mas a chegada da guerra levou ao seu cancelamento.

Os arquitetos e designers envolvidos com a olimpíada de 1964 tiveram, portanto, de satisfazer um objetivo ideológico claro –os jogos deviam servir para expor ao mundo o novo Japão, pacifista e voltado ao futuro, e por isso a estética e os símbolos nacionais tradicionais do Japão quase não apareceram. Nada de imagens do monte Fuji, nada de flores de cerejeira, nada de caligrafia. E qualquer expressão de orgulho nacional precisava ficar o mais distante possível do velho militarismo imperial.

Desenvolver o look que os jogos de 1964 teriam foi uma tarefa confiada a Yusaku Kamekura, o decano dos designers gráficos japoneses, que aprendeu design moderno com os professores treinados pela Bauhaus do Instituto de Nova Arquitetura e Artes Industriais de Tóquio.

Ilustração dos projetos ambiciosos de Kenzo Tange para o Ginasio Yoyogi Gymnasium, em Tóquio, capital japonesa. Ele desenvolveu uma nova tecnologia para concreto armado, e o teto suspenso do prédio era o maior do mundo na época
Ilustração dos projetos ambiciosos de Kenzo Tange para o ginásio Yoyogi, em Tóquio, capital japonesa - Biblioteca Frances Loeb/Escola de Design da Universidade de Harvard/New York Times

Enquanto os pôsteres de passadas Olimpíadas se concentraram em imagens figurativas, em muitos casos com referências greco-romanas explícitas, Kamekura destilou as ambições de Tóquio no mais simples dos emblemas –os cinco anéis entrelaçados, todos dourados, encimado por um grande disco vermelho, o sol nascente.

A mesma estética ousada caracterizaria o segundo pôster de Kamekura para a Olimpíada (um desafio técnico considerável em 1964) –uma foto que capturava corredores em ação e ocupava toda a largura do papel, sobre um fundo preto.

As principais cerimônias e eventos atléticos aconteceram num estádio sem coisa alguma de especial, que foi demolido posteriormente. No Parque Olímpico Komazawa, em Setagaya, a torre de controle projetada por Yoshinobu Ashihara tinha a forma de uma árvore de concreto de 50 metros de altura; ela ainda existe, embora sua franqueza brutalista tenha sido atenuada por um revestimento de tinta branca.

Mas foi o ginásio de Yoyogi, uma construção de menor porte, que expressou em concreto aquilo que Kamekura e outros designers estavam fazendo no papel. Seu criador, Tange, desenharia também o imenso edifício da Prefeitura de Tóquio e o hotel Park Hyatt da capital japonesa, que conta com o selo de aprovação de Sofia Coppola.

Em 1964, o ginásio de Tange abrigou as provas de natação, saltos ornamentais e basquete, e o casamento entre dinamismo e força bruta do projeto era um anúncio vistoso de que o Japão havia sido restaurado, ou mesmo de que o país havia renascido.

Visto de fora, ele parece formado por duas metades feitas de aço e concreto, como se resultantes de um todo maior que tivesse sido cortado e realinhado irregularmente. Mas a verdadeira inovação está na cobertura. A estrutura pênsil é uma retomada ainda mais avançada do conceito que Eero Saarinen usou para o rinque de hóquei da Universidade Yale, um projeto completado pouco antes, e faz referência também ao pavilhão Philips da Feira Mundial de Bruxelas, projetado em 1958 pelo herói de Tange, Le Corbusier.

O ginásio também acena mais discretamente para o projeto mais significativo de Tange até então, o arco do cenotáfio de Hiroshima, também uma curva de concreto reforçado. Em Hiroshima, o concreto curvo de Tange serve como mausoléu para a hora mais sombria do Japão; em Tóquio, ele abrigou um festival em homenagem à nova vida da nação.

O legado de Hiroshima também afetou a cerimônia de abertura, na qual o velocista Yoshinori Sakai, nascido em 6 de agosto de 1945, o dia em que a primeira bomba atômica da história foi lançada, acendeu a pira olímpica.

A Olimpíada de 1964 foi a primeira a ser televisionada para todo o mundo, por meio do primeiro satélite geoestacionário operado para uso comercial, e as famílias japonesas, dispondo de rendas mais altas, puderam até mesmo acompanhar os jogos em cores. No entanto, as imagens mais duradouras da Olimpíada de 1964 vieram do cinema, no documentário “Olimpíada de Tóquio”, do diretor Kon Ichikawa.

Filmado em formato CinemaScope, para telas largas, em cores ricas e usando teleobjetivas que haviam sido desenvolvidas havia pouco tempo, o documentário é, por imensa margem, o melhor filme já produzido sobre as Olimpíadas. (Ele está disponível para streaming, assim como outros filmes muito mais chatos sobre os jogos de 1912 a 2012, no Criterion Channel.)

Uma litografia de Yusaku Kamekura feita para as Olimpíadas de 1964, em Tóquio
Uma litografia de Yusaku Kamekura feita para as Olimpíadas de 1964, em Tóquio - Museu de Arte Moderna de Nova York/The News York Times

Diferentemente de “Olympia”, de Leni Riefenstahl, que prefaciou os jogos de Berlim com deuses-atletas arianos em trajes gregos, “Olimpíada de Tóquio” nos arremessa à modernidade desde a sequência de abertura –um sol brilhante e branco contra um céu vermelho —a bandeira japonesa, invertida— se transforma em bola de demolição, arremessada com violência contra pilastras.

Fachadas de edifícios despencam, pulverizadas; escavadeiras removem o entulho. Vemos o ginásio de Tange em meio à neblina, depois a parada da tocha olímpica e por fim multidões aglomeradas para testemunhar a chegada dos jovens participantes no aeroporto de Haneda.

Dentro dos locais de competição, as teleobjetivas permitiram que Ishikawa obtivesse filmagens deslumbrantes do suor dos corredores e da pele arrepiada dos nadadores, mas era igualmente frequente que ele filmasse sequências quase abstratas de esgrimistas e ciclistas decompostos em torrentes de cores.

Há campeões e recordistas em “Olimpíada de Tóquio”, mas eles dividem a tela com atletas que chegaram em último lugar. Disputas por medalhas de ouro são entrelaçadas com cenas mostrando detalhes quase sempre ignorados, de trabalhadores varrendo a pista do salto triplo, ou dirigentes do arremesso de peso transportando os pesos em um carrinho.

O Comitê Olímpico Japonês odiou o filme e encomendou outro; os nacionalistas o definiram como ataque ao patriotismo ou pior. Mas a destilação das ambições nacionais em forma abstrata empreendida por Ichikawa foi o marco da Olimpíada de 1964, e o documentário se tornou o maior sucesso nacional de bilheteria no Japão, um recorde que persistiria por quatro décadas.

Quer aconteçam em 2021, quer não, os novos Jogos de Tóquio certamente terão menos impacto cultural do que os precedentes. O primeiro logotipo para Tóquio 2020 foi descartado, por suposto plágio. O primeiro estádio proposto, também –o projeto inicial de Zaha Hadid foi abandonado e substituído por um estádio de madeira, mais sereno e muito menos dispendioso, projetado pelo arquiteto Kengo Kuma.

Se o aço e concreto de Tange expressavam as ambições japonesas em 1964, agora são os materiais naturais que apontam para uma visão de futuro no qual os desafios serão tanto ecológicos quanto econômicos. Mas Kuma, que era criança em 1964 e assistiu à Olimpíada, atribui ao ginásio de Tange a inspiração para sua carreira.

“Tange tratava a luz natural como um mago”, disse Kuma ao The New York Times dois anos atrás, recordando sua infância e a descoberta do Ginásio Nacional de Yoyogi. “Desde aquele dia, eu quis me tornar arquiteto.”

Tradução de Paulo Migliacci

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