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Cinema

Antes de a Cinemateca morrer, haverá vontade de resistir e brigar

Instituição, que agora demite todos os seus funcionários, é feita de memórias em movimento

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Leandro Pardí

Carta a Paulo Emílio Salles Gomes.

"Oi, Paulo, sabe, estou aqui em casa parado na frente do meu notebook, olhando meu gato e, sabe, eu tinha parado de fumar, mas diante de tudo, estou aqui agora segurando o meu cigarro mentolado —a Olga Futemma me disse que você gostava desses, e me lembrei de você.

Se bem que, na verdade, sempre penso em você. Apesar de estar na Cinemateca desde o ano de 2006, fui me debruçar sobre seus escritos só depois de muita aprendizagem (técnica) lá dentro. Foi quando me tornei coordenador de difusão, em 2015, ano em que fizemos a 'Mostra Cinema Novo'. Que bela mostra, Paulo! Exposição de originais, mais de 50 obras exibidas. Tudo produzido pelos funcionários.

Aqui no Brasil seguimos nos importando com validação dos gringos, acredita? E tivemos! Até o Richard Peña, da Film Society do Lincoln Center, nos elogiou. Acho que, naquele mesmo ano, li toda a sua obra, o que me dava um misto de consolo e força porque, afinal, o perrengue é incessante, né?

Acabou que todas as dificuldades me deram mais tutano para seguir e fazer atividades que, na medida do possível, nos aproximavam da nossa comunidade. Veja, mantivemos a programação dos nossos cinemas gratuita e sem um puto para fazer.

Sempre a questão de equipe insuficiente e pouca verba, né? No seu centenário, em 2016, foram meses e meses todos debruçados sobre seu legado (até hoje tem um site inteiro dessa homenagem). Lá no final do ano, e do centenário, que também culminou nos 70 anos da instituição, tínhamos produzido uma festona aberta.

Você teria gostado, funcionários e público juntos —roda de samba e conseguimos até apoio de marcas de comes e bebes, tudo o que uma boa festa de cinema deve ter. No mesmo dia recebemos a terrível notícia da morte do Andrea Tonacci e, olha, corremos pra atender o pedido da família —o velório tinha que ser na Cinemateca, no mesmo dia. Mas como?

Velamos pela manhã, revisamos correndo a película de 'Blá Blá Blá' para ser exibido ao ar livre, homenageamos e, enquanto o filme passava, arrumamos o foyer para seguirmos com as suas celebrações noturnas, tudo em um único dia. Acho que, de todos os meus anos de Cinemateca, esse foi um dos dias mais marcantes.

Eu me lembro de finalmente deitar e pensar que, de um jeito ou de outro, saudar e celebrar nossas memórias nos faz melhores, mesmo com perdas. Você sabe que diariamente dentro de um arquivo de filmes lidamos com as perdas. Concluí que permanecer é o que importa. Afinal, 'o futuro depende do passado que recuperamos no presente'.

Lygia Fagundes Telles, Cuco, como você chamava, me disse certa vez que Dylan Thomas, um poeta galês escreveu 'mesmo que os amantes se percam, o amor continua o amor'. Mesmo se nós desaparecermos, morrermos, tudo passa. Governo, tudo. O amor tem que continuar. Ela disse também que é assim que ela pensa a Cinemateca. Fiz questão de endossar essa citação na abertura do festival de curtas do ano passado. Que coisa.

Sabemos que as instituições de memória são feitas de permanência, de migalha a migalha, reparo a reparo. É estarrecedor que até poucos meses estávamos pensando em como fazer uma mostra de cinema sueco online (não é louco?). E hoje, aqui, perdemos todo o corpo técnico, pequeno, muito pequeno, é verdade, frente a tudo que precisa ser feito.

Mas não restou um para contar história. Como sabe, a Cinemateca é mais que suas paredes e acervo. Do contrário, a chamaríamos de frigorífico de filmes.

Tememos que não haja continuidade de ações implementadas ao longo de décadas de trabalho e em processo moto contínuo, tememos um novo matadouro, desta vez, da nossa cultura. O que é o cinema se não memórias em movimento?

Agora, demitido, depois de o meu gato passar pelo teclado, e o cinzeiro já cheio de lembranças, escuto sua voz empostada citando o texto abaixo, publicado em 1963.

'Vai ver, muitos dos meus provavelmente poucos leitores se perguntam qual Cinemateca é essa de que eu cuido. E, por outro lado, gostariam de saber —sabe Deus por quê!— se sou de briga. Pois não sou. E o divertido é que pensando bem verifico que não sou de briga precisamente porque o cuidado principal de minha vida é a Fundação Cinemateca Brasileira, tipo de coisa que não provoca controvérsia. Ninguém é contra. A vida da Cinemateca depende de certa lei a ser votada pelos deputados federais. Pois todos eles, há muitos anos, são a favor. Houve um que a certa altura foi contra, mas por engano. O diabo é que era o então líder da maioria que significou para nós quatro anos de esforços perdidos. Mas foi tudo um mal-entendido. Quando reina o bom entendimento, são todos a favor. Unanimemente. A tal ponto que nunca discutem o assunto. E dele acabam se esquecendo. Quando a Cinemateca morrer, será cercada por uma unanimidade de opiniões, legislativas e outras, que desejam sua vida. O que dá vontade de brigar."

'Cinemateca e briga.' Brasil, urgente. Seguimos!

Dedicado a Maria Beatriz F. Leite."

Leandro Pardí é ex-coordenador de difusão da Cinemateca

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