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The New York Times

Sequências grandiosas só reforçam a ausência de coração no filme 'Tenet'

Roteiro do longa de Christopher Nolan, sobre inversão do tempo, é falho em sua suposta e frágil intelectualidade

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Jessica Kiang
The New York Times

Talvez tenhamos todos nos tornado escravos da indústria dos super-heróis, mas o mundo do cinema está em busca de um salvador, neste exato momento.

Se o papel couber a Christopher Nolan, não seria a primeira vez. Seus filmes, como “A Origem”, a trilogia “Cavaleiro das Trevas”, “Interestelar” e “Dunkirk”, salvaram verões, reputações e estúdios. Será que Nolan conseguirá salvar o cinema da Covid, seu inimigo mais letal até agora?

O aguardado “Tenet” é grandioso sob todos os critérios —exceto tematicamente. É inegavelmente apreciável, mas sua grandiosidade só serve para iluminar quão frágil é a suposta intelectualidade do roteiro. Essa crítica não se aplicaria a qualquer blockbuster. Mas Nolan é o mais destacado autor de filmes que combinam engenhosidade visual, pipoca e satisfações cerebrais.

Com ironia imprevista, o filme, que será exibido em salas cuja capacidade de público foi restringida, começa num auditório lotado, em Kiev, onde está acontecendo um ataque terrorista. Um dos atacantes, interpretado por John David Washington, revela ser um agente da CIA que se infiltrou para resgatar outro agente, quando uma coisa curiosa acontece —uma bala, disparada por um aliado desconhecido, subitamente desatinge um assento vizinho, e as marcas que o tiro deixou desaparecem. O agente mal tem tempo de admirar o ocorrido.

Em poucos minutos de projeção, o filme já mostrou a que veio —a sequência termina com tomadas internas e externas de uma explosão. “Tenet” opera em nível fisiológico —no gorgulho da trilha sonora, na resposta das pupilas dilatadas à direção de câmera ou nas linhas e texturas dos figurinos. Sério, o aspecto mais impressionante de “Tenet” talvez seja o orçamento investido em passar roupa.

O personagem de Washington é rapidamente apresentado aos mistérios da “inversão”, um processo pelo qual objeto ou pessoa pode ter sua entropia revertida, fazendo com que as coisas pareçam estar acontecendo ao contrário.

Sua nova missão o leva primeiro a Neil, papel de Robert Pattinson, útil tanto por sua capacidade de ação quanto por seu mestrado em física; em seguida a um vendedor de armas em Mumbai, vivido por Dimple Kapadia, e de lá ao malévolo zilionário Andrei Sator, papel de Kenneth Branagh, acessível só por meio de sua mulher, interpretada por Elizabeth Debicki, negociante de arte sofrida e em risco que despreza o marido.

A trama é tão contorcida que o melhor é não tentar entender. Mesmo a cientista vivida por Clémence Poésy, cujo papel no filme é exclusivamente o de explicar a trama, desiste no meio do caminho. “Não tente compreender. Sinta”, é o melhor conselho que alguém oferece sobre a história.

Como em “A Origem”, que criou uma mitologia onírica só para ver as cenas do corredor giratório transformadas em sua sequência mais emblemática, em “Tenet” a inversão do tempo traz uma ameaça de aniquilação, mas a cena matadora é, de novo, uma luta num corredor. Nós a vemos duas vezes, e em cada uma dessas ocasiões, depois que o cérebro percebe que um dos lutadores está avançando no tempo e o outro recuando, a engenhosidade com que a cena foi filmada deslumbra.

Mas pontos cegos sempre presentes nos trabalhos do diretor voltam a estar em evidência. É deprimente que uma atriz tão boa quanto Debicki se veja confinada a um papel tão nulo. Todos se saem perfeitamente, especialmente o protagonista anônimo de Washington. Alguns usam ternos, de caimento tão perfeito que uma das maiores risadas do filme surge quando Michael Caine olha de relance para Washington e comenta, com acidez britânica, que “isso não daria certo com um [terno] Brooks Brothers”.

Washington é basicamente James Bond, quer esteja avançando no tempo, quer esteja recuando, uma espécie de 00700. E se é preciso o carisma de um grande astro para ocupar um papel tão vaporoso, ele tem a sorte de contar com a companhia do igualmente inabalável Pattinson —a química entre eles, como o semiflerte não sexual entre Washington e Debicki, oferece o pouco que há de romance.

Mas não é só a ausência de coração que faz com que pareça faltar alguma coisa em “Tenet”. Nolan imagina tecnologias impossíveis, mas não explora suas implicações mais profundas. A motivação de Sator para pôr o futuro em guerra com o passado tem ramificações preocupantes, e talvez seja o niilismo desta era de pandemia que desperta o desejo de ver o pior acontecer. Em lugar disso, Nolan recua à relativa segurança das convenções dos filmes de espionagem.

De fato, se desconsiderarmos o truque da distorção temporal, “Tenet” é composto por situações genéricas —invasões clandestinas, perseguições motorizadas, desarme de bombas. A realidade, porém, é que não é certo dizer que Nolan torna os blockbusters mais maduros, porque o que ele faz é dar mais nobreza a fixações adolescentes que muitos adultos ainda mantemos, criando fervilhantes paisagens conceituais nas quais tudo que os envolvidos fazem envolve arrombar cofres e explodir coisas.

Mas como ele as explode bem! E isso quer dizer algo num momento como este, quando imagens em grande escala, explosões e cenas de ação complexas, e não um significado profundo, é o que levará os espectadores assustados com o coronavírus a enfrentar as salas de cinema.

Talvez “Tenet” possa até oferecer um vislumbre nostálgico da situação em que estávamos meses atrás, do lado oposto de nossa própria estranha experiência temporal.

Em dado momento da história, o iate de Sator está ancorado na costa amalfitana , perto de Pompeia —uma cidade petrificada no pico de sua decadência pela explosão de um vulcão que seus moradores não perceberam que estava por irromper. É o que “Tenet” parece —um espetáculo dispendioso e vazio, transformado agora em um artefato fascinante de uma civilização que não imaginava o desastre que estava por acontecer.

Veja, nem que só para admirar a glória daquilo que um dia tivemos e que corremos o risco de nunca mais ter. Bem, isso e os ternos.

Tradução de Paulo Migliacci

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