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Caetano Veloso diz ainda ser o agente desvirilizante e subversivo preso na ditadura

Tropicalista estrela filme 'Narciso em Férias', em que narra meses vividos no cárcere pelas mãos do regime militar

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O cantor e compositor Caetano Veloso durante depoimento à Polícia Federal, no Rio de Janeiro, em 1975 Folhapress

Rio de Janeiro

Nos dois meses em que esteve preso, na virada de 1968 para 1969, Caetano Veloso não viu seu próprio rosto. Guardada nos arquivos da ditadura, uma fotografia preservou a cara do artista na cadeia sem espelhos: rosto magro, corte militar, olhar mais rijo que triste.

No livro de memórias “Verdade Tropical”, o capítulo sobre a temporada no cárcere absorveu uma imagem do romance “Este Lado do Paraíso”, de Scott Fitzgerald: “Narciso em Férias”. É também o nome do documentário de Renato Terra e Ricardo Calil que estreia, nesta segunda, no 77º Festival de Veneza e no Globoplay. A pedido do músico, a Companhia das Letras lança o capítulo da prisão num volume à parte, acrescido de fac-símiles de seu interrogatório e documentos sigilosos.

Caetano Veloso, documentário
Caetano Veloso em cena do documentário 'Narciso em Férias', de Renato Terra e Ricardo Calil - Reprodução/Divulgação

Coprodutora com a VideoFilmes, Paula Lavigne idealizou o documentário e convidou para dirigi-lo Renato Terra, que repete a parceria com Ricardo Calil, iniciada no longa “Uma Noite em 67”. No cenário austero da Cidade das Artes, no Rio, Caetano concedeu uma entrevista de seis horas aos diretores, que decidiram não usar imagens de arquivo e outros depoimentos, mas investir numa estética desplumada, concentrada no poder verbal do compositor.

“Nesse formato minimalista, o detalhe ganha relevância. Toda a parte da solitária tem o plano mais fechado. Há uma experiência de prisão. O filme pretende provocar esse sentimento de desconforto”, diz Renato Terra. “Ele não se coloca na posição nem de herói, nem de vítima. Faz um mero relato do que aconteceu, do que sentiu na prisão”, acrescenta Calil. “A gente fez essa aposta de o filme ter a força da palavra dele”.

Quatorze dias depois do AI-5 (Ato Institucional Nº 5), em 27 de dezembro de 1968, Caetano e Gilberto Gil foram presos por policiais à paisana em São Paulo e levados de carro até o Rio. Depois da fase épica dos festivais, os tropicalistas viveram o crepúsculo do movimento em solitárias do 1º Batalhão de Polícia do Exército (PE), na Tijuca. Nessa altura, Dedé Veloso, então esposa de Caetano, desconhecia seu paradeiro.

Transferidos na semana seguinte para a PE da Vila Militar, no subúrbio de Deodoro, eles cairiam por fim nas celas do quartel dos Paraquedistas do Exército. No filme, Caetano chora ao rever as tais fotografias do globo terrestre na revista “Manchete” lida no xadrez —uma cena revivida na canção “Terra”.

“Renato me estendeu a mão e me perguntou se tinham sido aquelas fotos. Respondi com naturalidade, olhei as páginas com certo estranhamento: não me dava conta de que nunca tinha voltado a vê-las. Num momento qualquer, já no meio da resposta, me assustei com o que estava vendo. Senti um vazio no tempo”, conta Caetano, em entrevista.

A libido do prisioneiro chegou a zero, mas sua abertura para as superstições se agigantou. Aos 26 anos, ele reconhecia sinais da libertação cada vez que “Hey Jude” tocava num radinho de pilha. Belo momento do documentário, sua interpretação da música de John Lennon e Paul McCartney transparece os resíduos de sua esperança na cadeia, onde compôs a canção “Irene”, agarrado à lembrança do sorriso da irmã.

Diante das câmeras, Caetano releu seu depoimento ao Exército e sorriu dos adjetivos: “Subversivo e desvirilizante é uma combinação que tem a ver comigo. Eu sou essa pessoa. Tá certo. Mas ‘exalta os sistemas socialistas’, não! Nunca exaltei”.

Ausente na solitária, a insônia tornou a assediá-lo em Salvador. “Depois da prisão, a dificuldade de dormir voltou —com agravantes. Eu experimentava terrores noturnos. Tinha dificuldade de admitir que eu estava obrigado a me apresentar diariamente a um coronel e proibido de deixar o perímetro urbano de Salvador, para onde eu e Gil tínhamos sido levados pela PF a mando dos militares”, ele lembra. “Hoje continuo achando difícil dormir. Mas já não me preocupo demais com isso.”

O lado dramático da tropicália seria ruminado mais adiante. “Sempre considero que em Londres eu não conseguia pensar com muita clareza. Estava deprimido com a situação do exílio e era muito difícil acreditar na vida fora do Brasil”.

“Sou de uma geração e de uma região que, digamos assim, não cria na existência do mundo exterior. Víamos filmes americanos e franceses, mexicanos e italianos, ouvíamos canções em inglês e em espanhol, em italiano e francês, mas tudo aquilo parecia ser irreal, parecia só existir nas telas e no rádio. Eu tinha (ainda tenho) de fazer esforço para crer que a vida na Inglaterra era real”.

Na aparência, a prisão se baseava numa mentira divulgada pelo radialista Randal Juliano, de que seu show na boate Sucata, no Rio, envolvia um número com a bandeira nacional e a execução do hino entre palavrões. Mesmo esclarecida a farsa, veio o exílio.

“Tive certeza de que a fake news de Randal Juliano tinha sido um mero pretexto quando o major Hilton me pediu desculpas por não ter me liberado quando tinha prometido”, afirma Caetano. Sua suspeita cresceu na fase final. Na sala de um capitão, ele ouviu uma análise agressiva mas complexa sobre os tropicalistas, qualificados como mais insidiosos que os cantores de protesto.

Na rápida visita ao país, em 1971, para os 40 anos de casamento dos pais, foi outra vez cercado por agentes da repressão. “As notícias de prisões e internações psiquiátricas se multiplicavam. O tropicalismo era sentido como uma experiência sábia-ingênua que resultava perigosa. Para nós e para nossos inimigos. O que mais me movia era a vontade de voltar ao Brasil para poder ter pensamentos reais sobre a vida real”.

Na introdução de “Narciso em Férias”, o livro, Caetano afirma que o texto “entra na cena atual da vida política brasileira de modo abrasivo”. Com frequência, os desvios da história motivam um retorno a canções suas antigas. Em quarentena no Rio, ele voltou a cantar “Nu Com a Minha Música”, que traz este verso: “vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Ele pensa, naturalmente, nas ameaças à democracia.

"Às vezes me assusto com o pioneirismo do Brasil no casamento de estado repressivo com ideologia econômica ultraliberal. Pinochet & Chicago boys (Guedes incluso) vieram quase uma década depois de Castelo Branco & Roberto Campos”, ele observa. “Mas, claro, nenhuma dessas definições podem se aplicar ao caso brasileiro: somos anômalos. O liberalismo de Campos e Bulhões não foi tão liberal e o milagre de Delfim era meio chinês”.

“Todos os meus sonhos buscam o jeito de usarmos nossa anomalia para criar um novo modo coletivo de ser. Na real, reajo com repulsa aos arreganhos antidemocráticos e não tenho como aceitar os antiambientalistas. A receptividade, por parte dos liberais, de ideias monstruosas só faz lembrar que ‘liberdade’ para eles nunca foi senão liberdade de acumular riqueza”.

Homem de vibrações urbanas, Caetano não faz fita de misantropo. O estímulo para suas canções vem de encontros, conversas, filmes, praias, carnavais. Era previsível que o ritmo de criação caísse na quarentena. Com Zeca, seu filho, planejou gravar as inéditas. “Nesses meses, compus muito menos do que nos anteriores. Não que eu quisesse estar compondo dezenas de canções, mas estava animado para fazer um disco que me fosse satisfatório (coisa que nenhum dos que fiz é)”.

Os primeiros esboços sugerem um salto experimental no próximo álbum. “Queria inovar na produção e começar com uma música que já teria dança desde o arranjo. Digo, eu definiria a batida a partir de movimentos que queria experimentar com componentes do Balé Folclórico da Bahia”, ele explica. “Quanto às maluquices do Brasil, às vezes produzem desespero. Mas dão vontade de fazer uma nova canção sobre os descaminhos do mundo atual.”

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