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Documentário sobre Claudia Andujar é uma história sobre perdas

'Gyuri' mostra tentativa de entender um mundo que se apresenta sempre hostil e de sobreviver em meio à destruição

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Gyuri

"Gyuri" começa muito estranho. Uma mulher narra ao entrevistador atento e curioso cenas de sua infância. Ela fala em húngaro com visível dificuldade. Terá sido seu idioma natal, mas não se expressa tão bem nele. O entrevistador a ajuda, e, assim, penosamente, Claudia Andujar narra, entre outros, a história de seu primeiro beijo. Um único beijo que lhe deu o menino Gyuri. Ela lembra esse momento intensamente. Logo depois Gyuri e o pai da mulher foram levados a Auschwitz e mortos. A idosa, a fotógrafa Claudia Andujar, ainda guarda consigo a foto dos dois –o pai e o namorado.

mulher branca sentada e, a sua volta, homens e uma criança indígenas
A artista Claudia Andujar com indígenas em cena do filme "Gyuri", exibido no É Tudo Verdade - Divulgação

O que intriga –por que o entrevistador, o filósofo Peter Pál Pelbart, quer ouvir essa história na língua em que ela ocorreu? Peter é húngaro de nascimento (como, em linhas gerais, Claudia Andujar), com formação francesa e há muito vivendo no Brasil.

A cena seguinte nos leva a uma trilha na selva, percorrida por Claudia Andujar penosamente, numa cadeira de rodas, ora puxada e ora empurrada por Carlo Zacquini. Eles chegam enfim a uma aldeia ianomâmi, onde ela (sobretudo) é festivamente recebida. Ali encontram Davi Kopenawa, líder indígena ianomâmi. Também xamã e escritor.

Eles conversam, os quatro, em português. Recordam momentos vividos em conjunto no exterior. Duas coisas chamam a atenção –a admiração de Kopenawa pela capacidade de compreender a alma do outro demonstrada por Andujar, e suas queixas em relação ao governo brasileiro, que nunca compreendeu, nem remotamente, a alma do índio. Dividiu o território ianomâmi em 19 ilhas, cercadas de branquitude por todos os lados. Não é um lugar de liberdade, são prisões. O inverso do que ele concebe como vida para seu povo.

Claudia Andujar, sabemos, há muitos anos se dedica a esse povo e à sua alma, que busca em cada fotografia. Carlo Zacquini é um missionário católico. Não brasileiro, notamos pelo sotaque. Sabemos que Zacquini é um defensor dos índios também há décadas e que chegou a escrever cartas ao papa intercedendo pelos direitos indígenas.

Mas não é disso que se trata aqui. Nem das fotos de Andujar. Sim, há rostos de índios. Alguns felizes pela presença de pessoas amigas, algumas indiferentes, outras francamente assustadas —não com as visitas, aparentemente, mas com o destino que vislumbram para si.

Mas o que, afinal, conduz “Gyuri”? Essa é uma história de perdas e deslocamentos. A perda brutal de Gyuri, primeiro amor, parece orientar o destino de Claudia Andujar. Criada numa parte da Hungria que depois se tornaria Romênia, fugida do nazismo, com outra nacionalidade, andanças pelo mundo. Zacquini é um missionário, nômade por natureza. Kopenawa nasceu ianomâmi e livre e foi aprisionado em uma das ilhas criadas pelo governo brasileiro (isso num tempo em que o genocídio não era uma política de Estado mais ou menos explícita).

O que agrupa todos os momentos de “Gyuri” é, precisamente, o fato de os quatro personagens centrais desse encontro se sentirem, de algum modo, em exílio. Todos se expressam em alguma língua estrangeira (é o que no início Pál Palbert parece querer enfatizar). Seu idioma comum é o da imagem, que pode ser precária, como a velha fotinho de Gyuri, que nem chegamos a ver.

Essas falas de exílio, de deslocamentos, constituem o filme de Mariana Lacerda –a tentativa de entender, entre pessoas, um mundo que se apresenta sempre hostil, e de, pela compreensão, sobreviver, evitar o naufrágio de um mundo cada vez mais à vontade no idioma da intolerância e da destruição (da floresta e seus povos, para começar).

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