Em tempos de enorme desconforto, o Emmy, principal premiação da TV americana, preferiu jogar na zona de segurança e escolher séries atemporais para contemplar. Dificilmente poderia ser mais previsível e sem graça, embora seja difícil recriminar apostas seguras em um ano de pura incerteza.
O trunfo da noite coube a “Schitt’s Creek”, uma sitcom produzida pela canadense CBC que chegou ao fim neste ano após seis temporadas e acompanha as desventuras de uma família amalucada que perde sua fortuna e tem de se reenquadrar.
Famílias amalucadas são o tema de 70% das sitcoms, algumas melhores (“Arrested Development”, “Os Simpsons”) e outras mais chochas (“Três É Demais“). A fórmula, que parecia vencida, talvez faça sentido quando estamos todos presos em nossas casas encarando esse intensivão de convivência como desafio.
A série, que no Brasil está disponível na Amazon Prime Video, abocanhou todos os prêmios para comédia –ator (Eugene Levy, o professor de “American Pie”), atriz (Catherine O’Hara, a mãe de “Esqueceram de Mim"), ator coadjuvante (Daniel Levy, filho de Eugene e showrunner da série), atriz coadjuvante (Annie Murphy), roteiro, direção e, finalmente, melhor comédia.
Para bater esse recorde, deixou para trás pérolas como “Maravilhosa Sra. Maisel”, “O Método Kominsky”, “Segura a Onda” e “The Good Place”, esta também em temporada final.
Com seus sete troféus, bateu o favoritismo da campeã de indicações “Watchmen” e do bom novelão familiar “Succession”. A cria da emissora pública canadense acabou deixando em segundo plano a disputa entre Netflix e HBO, da qual esta última saiu vencedora.
“Watchmen”, uma fantasia de futuro alternativo que revisita, em linguagem de quadrinhos, um dos grandes massacres racistas dos Estados Unidos, o de Tulsa em 1921, levou quatro estatuetas principais, além de seis prêmios técnicos anunciados mais cedo.
Provavelmente a série mais importante em um ano em que a questão racial finalmente virou assunto incontornável, seja nos Estados Unidos ou no Brasil, a adaptação da história de Alan Moore ficou com os Emmy de melhor minissérie, melhor atriz (a imbatível Regina King, já na quarta estatueta), melhor ator coadjuvante (Yahya Abdul-Mateen II) e melhor roteiro (Damon Lindelof, que agradeceu a seu terapeuta).
“Sucession”, outra produção da HBO, foi considerada o melhor drama do ano, com o melhor ator (Jeremy Strong), a melhor direção (Andrij Parekh) e o melhor roteiro na categoria (Jesse Armstrong). A intriga familiar por um império de comunicações ainda conquistou mais três prêmios técnicos, provando que um novelão bem escrito sempre será capaz de fisgar a atenção do espectador.
As surpresas da noite foram poucas, mas tocaram em questões mais sensíveis do que seus pares em drama e comédia –a estrela juvenil Zendaya foi contemplada como melhor atriz dramática pela impressionante atuação em “Euphoria”, uma série hiperrealista sobre vícios na adolescência, também da HBO; a alemã Maria Schrader foi considerada a melhor diretora, por “Nada Ortodoxa”, um mergulho de tons feministas na comunidade judia ortodoxa do Brooklyn levado ao ar pela Netflix.
Mark Ruffalo, figurinha carimbada, levou mais um troféu para a HBO por sua dupla atuação na minissérie “I Know This Much Is True”, e a incrível Julia Garner conquistou, como atriz coadjuvante em drama, o único troféu para a grande “Ozark”.
Foi Uzo Aduba, porém, quem garantiu o momento mais terno da noite. Como todos os contemplados receberam suas estatuetas em casa —ou em quartos de hotel pelos Estados Unidos e pelo mundo—, a excepcional intérprete da deputada Shirley Chisholm na nova “Mrs. America”, da Fox, teve como primeira reação chamar pela mãe, incrédula.
Aduba, que ficou conhecida como a Crazy Eye de “Orange Is the New Black”, perdeu as palavras, mas falou por meio de sua camiseta –como Regina King, ela estampou o nome de Breonna Taylor, uma técnica de enfermagem negra morta pela polícia em Louisville, um crime que ganhou atenção nacional e que neste mês culminou em uma rara indenização da cidade à sua família.
O recorde de indicações de atores e atrizes negros se traduziu em prêmios, e a presença entre apresentadores foi representativa.
Mais uma vez à frente da cerimônia, Kimmel teve de se virar para garantir risadas sem a ajuda dos aplausos e sorrisos chapa-branca da plateia, vetada no teatro por causa da Covid-19.
Fez bonito, variando entre momentos de exasperação, ao ver “Schitt’s Creek” levar seu sétimo troféu para o Canadá (“agora um em cada 20 canadenses já tem um Emmy”), e graça, ao dar o palco para um inspirado Anthony Anderson (“Black-ish”) discorrer sobre como a TV ainda deve espaço e atenção aos negros.
Os trechos gravados foram divertidos —com destaque para a aparição do trio feminino de “Friends”, Jennifer Aniston, Courteney Cox e Lisa Kudrow, “revelando” que ainda frequentam a mesma casa e a Bryan Cranston e grande elenco “descrevendo” como passam seus momentos de confinamento.
Trabalhadores essenciais anônimos —carteiro, caminhoneira, enfermeira, agricultora— gravaram participações pelo país, e não faltaram apelos para que os americanos saíssem de casa para votar em novembro (nos Estados Unidos, o voto é facultativo).
Pequenas reverências, nenhuma surpresa. Talvez apenas o acalento de que precisamos neste ano desgraçado.
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