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Cinema

Escravos agora libertos habitam pensamento de brancos em filme

Longa 'Todos os Mortos' conta história de família de fazendeiros decadente que se encontra em São Paulo após a abolição

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Todos os Mortos

  • Quando Sáb. (19), às 20h
  • Onde Canal Brasil
  • Elenco Clarissa Kiste, Thaia Perez e Leonor Silveira
  • Produção Brasil e França, 2020
  • Direção Caetano Gotardo e Marco Dutra

É possível resumir “Todos os Mortos” como a história das mulheres de uma família de fazendeiros decadente que deixa o interior e se encontra em São Paulo em 1899, ou seja, 11 anos após a Abolição, dez anos após a Proclamação da República e véspera de um novo século.

Das três, uma é freira, a segunda vive afogada em seus fantasmas, a terceira, a mãe delas, experimenta o sentimento de fim de vida com alguns ressentimentos e outras tantas esperanças. Esse é um retrato meio expeditivo das três mulheres, em parte porque, a rigor, o filme propõe uma questão bem familiar aos brasileiros –que país é este?

A saber –Maria, papel de Clarissa Kiste, a freira, representa a Igreja Católica, seu cortejo de superstições e a necessidade de perseguir tanto quanto possível as manifestações religiosas de origem africana, ou seja, cultos que nos chegaram por meio dos escravos. Maria é uma espécie de encarnação do século que passou.

Esses escravos, agora libertos, habitam o corpo e o pensamento dos brancos com intensidade. O de Ana, vivida por Carolina Bianchi, ainda mais. Corpo afetado pelos gritos, pelos suplícios e, sobretudo, pelos cadáveres dos ex-escravos. Como se experimentasse o passado com atração e repulsa. Como se tentasse dar um pulo à frente, passando do desejo materno (o piano clássico) ao próprio desejo, mas não fosse capaz desse gesto —que equivaleria, também, a superar o passado e entrar no presente.

Existe em tudo isso um ambiente de horror (não por acaso, Marco Dutra é um dos diretores), mas ele nunca se consuma —pois não por acaso o outro diretor é Caetano Gotardo, que aprecia essas situações flutuantes, suaves e terríveis como a polca que Isabel, papel de Thaia Perez, ensaia e busca ensinar ao menino negro que trança pela casa, junto com a mãe.

Quem quiser fazer o inventário dos senões de “Todos os Mortos” terá com o que se divertir. Eles estão à vista. É possível observar certas instabilidades de tempo (no início, em especial), certas instabilidades na direção de atores, ou a ideia questionar a ideia de abrir o filme com o canto africano de uma mulher negra. Deixa a impressão de que o problema nacional (que país é este?) são os negros.

Essas pequenas questões não bastam, nem de longe, para afastar a dialética do filme –existe o branco de um lado, sua cor, suas crenças e sua dominação. E do outro lado, o negro, com cor, crenças e a domesticação a que anos de cativeiro o mais cruel possível o submeteram.

Como promover o encontro dessas potências que veem o mundo passar do bonde puxado a burro ao elétrico, da casa térrea ao arranha-céu sem nunca se encontrarem de maneira adequada a projetar um futuro decente? Essas forças condenadas uma a sucumbir à dominação da outra e a outra aos horríveis fantasmas que esconde na insânia?

Eis a questão que ora numa atmosfera que beira o terror, ora a observar o se mover das águas paradas, propõem Dutra e Gotardo. O de um encontro necessário, mas nem por isso prestes a acontecer.

Sim, existe algo de “O Som ao Redor” aqui. Um som ao redor à paulista, que talvez seja mais palpável nas imagens discrepantes –na caligrafia caprichada do século 19 que passa não ao computador moderno, mas aos garranchos nas paredes do século 21. Essa marca da impossibilidade de ser. Pessoal ou como nação.

Não é uma questão pequena, afinal. Nem pequeno é o filme.

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