Algumas coisas podem colocar “O Diabo de Cada Dia” um degrau acima da média da produção americana atual. A primeira delas é nos levar a alguns desses buracos onde a vida parece não existir. Lugarejos perdidos, com 400 ou 500 habitantes.
Poderia lembrar até “Ozark”, a série da Netflix, sem os magnatas do crime que aparecem ou vivem por lá. Poderia lembrar até “Twin Peaks”, caso as cidadezinhas fossem mais acolhedoras e habitadas por pessoas da classe média.
Nada disso: a gente de lá é pobre, assim como o posto de gasolina é velho e a mercearia encardida. A visão tem algo de original.
A segunda delas é o bom ponto de partida. Temos ali um povo movido a poder de fé. As personagens acreditam, não raro, que pedindo algo a Deus com a devida vontade e a devida fé as coisas vão acontecer conforme seus desejos. A esse povo se mistura, no início, o retorno da Segunda Guerra Mundial (o filme terminará durante a Guerra do Vietnã). Antonio Campos nos conduz em seu novo filme, portanto, a um país constituído por fé e armas. Religião e violência. Um tão radical quanto outro.
Eis algo que torna seu cenário não apenas exótico como tristemente próximo de eventos muito brasileiros. Existe, por fim, um elenco bem dirigido e bastante equilibrado, embora composto não raro por pessoas bonitas demais para viverem e crescerem num lugar e em circunstâncias tão miseráveis.
A isso se contrapõe, desde logo, um aspecto da direção de fotografia, que coloca em diversos momentos certos rostos, especialmente o de Robert Pattinson, na sombra, deixando seus olhos (e pensamentos, portanto) velados ao espectador justamente quando seria mais interessante perscrutá-los. Pattinson pode ser um pastor perverso, mas não um dom Corleone.
A isso, no entanto, sobrevive-se bem. O problema crucial de “O Diabo de Cada Dia” é mais de desenvolvimento da narrativa. Isto é, os diversos personagens que aparecem ao longo da trama sofrem de um mesmo mal: a enorme proximidade entre a fé mais pura e o mal também puro que os habita.
A relação entre mania religiosa e criminalidade não é nova. Acrescentar-lhe o militarismo norte-americano é um bom achado. Juntar-lhes o que uns lugarejos perdidos no mundo podem oferecer de fragilidade real e sensação de força (quase sempre imaginária) às pessoas enriquece a situação.
No entanto, Campos não se deixa levar pela miséria (ou eventual riqueza) das pessoas que ali se fixaram por qualquer razão. Seu interesse único é a patologia dos habitantes. Daí o interesse do filme quase se esgotar uma vez terminado o primeiro episódio, o que diz respeito ao ex-soldado Willard Russell (Bill Skarsgard), sobrando uma réstia de interesse derivada do destino de seu filho (Tom Holland).
Mas o que acontece no posto de gasolina, na mercearia, nas ruelas? Será tudo um simples mundo em que Deus e Diabo habitam os mesmos maníacos religiosos? Aceitemos que a religião é uma força demoníaca.
Ainda assim, seria mais interessante conhecer um pouco melhor a senhora que reza a Deus todo dia, antes de cozinhar, pedindo que ele faça a comida sair boa (como se ela mesmo não existisse) do que sobre a penca de criminosos que se revezam ao longo do filme.
E, ao longo de todo o filme, é lícito perguntar: mas o que faria um Samuel Fuller com um argumento desses? Ou um Curtis Hanson dos seus bons dias? Não é um bom sinal quando isso acontece. A gente pensa nessas coisas quando o filme começa a rodar em falso.
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