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Livros machismo

J.K. Rowling mostra seu feminismo limitado em 'Troubled Blood'

História de detetive é não só salada de referências, mas romance caça-níqueis que atira para todos os lados

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Troubled Blood

  • Preço R$ 57,90 (ebook na Amazon), em inglês
  • Autor Robert Galbraith, pseudônimo de JK Rowling
  • Editora Mulholland Books

“Troubled Blood” é o quinto livro de Robert Galbraith —pseudônimo de J. K. Rowling, autora da saga “Harry Potter”— protagonizado pelo detetive Cormoran Strike.

No calhamaço de quase mil páginas lançado há poucos dias e ainda não traduzido para o português, Strike é contratado para investigar o desaparecimento da médica Margot Bamborough. Quarenta anos se passaram desde que ela saiu da clínica em que trabalhava para não ser mais vista.

Publicado na esteira de uma série de declarações transfóbicas da autora, o livro causou polêmica por causa do personagem Dennis Creed —um assassino em série que se veste de mulher a fim de conquistar a confiança das vítimas. Ao conservar acessórios e peças de roupa como suvenir, ele sente que rouba uma suposta “essência” das mulheres.

Não é um detalhe desprezível. Estamos diante de uma autora que tem deixado muito claro o que pensa a respeito de um grupo vulnerável e frequentemente marginalizado, fornecendo aqui — mais do que qualquer outra coisa — uma caricatura do próprio preconceito na ficção.

Não há nenhuma dúvida de que “Troubled Blood” foi pensado para ser um sucesso comercial. Quase nenhum clichê foi esquecido. Até o romance melodramático entre os detetives tem um lugar garantido, com direito a sentimentos ambíguos e nunca reconhecidos de todo.

Cormoran Strike, difícil e enigmático, torturado pelo próprio passado, tem medo de se comprometer. Robin Ellacott, traumatizada pela violência de gênero e por um divórcio turbulento, não sabe bem o que quer. Strike e Robin foram feitos um para o outro, mas não admitem isso.

Mais do que previsível, o livro é uma colagem mal acabada de retalhos de enredos de sucesso. As fontes de inspiração de Rowling —mais audiovisuais do que propriamente literárias, se se considerar o meio a partir do qual se popularizaram — são óbvias, talvez porque seja óbvia a intenção de levar a trama para as telas.

De Thomas Harris a Dan Brown, passando, é claro, por Stieg Larsson, a autora ciscou nos canteiros certos. Se fosse um soft-porn, “Troubled Blood” teria um personagem trilionário, uma jovem tosca e doses de sadomasoquismo pasteurizado.

“Troubled Blood” não é só um Frankenstein feito de narrativas conhecidas, mas um romance caça-níqueis que atira para todos os lados, sem distinção. Uma ampla gama de personagens permite à autora entrar em discussões sobre identidade e pertencimento, que englobam desde laços de parentesco até o nacionalismo.

Mas o lugar de honra é da astrologia, com direito a ilustrações feitas por um policial em surto na década de 1970. São páginas e páginas discutindo se o assassino é, digamos, do signo de capricórnio.

Como justificativa para atacar pessoas trans, Rowling já afirmou estar defendendo as mulheres. No entanto, apesar de ter tido a chance de modificar a fórmula e a estrutura do romance policial, a autora escolheu abraçar um chavão.

Mulheres raptadas, estupradas, torturadas e mortas compõem não só o cenário brutal que é alvo da crítica principal do livro, mas, o que fica evidente, surgem também de modo apelativo, ajudando a criar e a moldar a tensão.

Não se pode nem contar com uma Lisbeth Salander para deixar a coisa mais interessante —embora a personagem originalmente criada por Larsson também cresça numa trama policial mais ou menos clichê. O objetivo de Rowling é revelar a misoginia amplamente naturalizada, embora a narrativa não mostre nenhuma coerência interna nesse sentido.

Some as saídas fáceis e óbvias e o melodrama de quinta às construções constrangedoras de que Rowling —tanto de um ponto de vista feminista quanto literário— não parece ter vergonha de se servir.

As próprias personagens mulheres são com frequência desenvolvidas e descritas a partir de estereótipos e termos que boa parte da crítica já se cansou de apontar como clichês de gênero. A ex-noiva instável e imprevisível de Strike, por exemplo, é para ele como “uma droga ou uma doença”.

O desfecho do livro, no qual assassino e motivação são revelados, é a prova definitiva de que, embora tenha a intenção de questionar certos papéis, o suposto comprometimento de Rowling com o feminismo é limitado.

Não se pode nem sequer dizer que o resultado final de “Troubled Blood” é bem-sucedido no saladão de referências que reúne e na reprodução de uma fórmula batida. O livro se arrasta, e Rowling definitivamente não sabe a hora de parar. Você não pode deixar de perder, eu diria.

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