“Sarabanda” é o segundo disco de Lívia Nestrovski e Arthur Nestrovski. Na capa, uma pintura de Daniel Sambo-Richter retrata um nadador suspenso no ar em meio a um salto. A imagem tem um quê de melancolia e, tal como o nadador, estamos prestes a mergulhar num universo de lirismo e delicadeza.
O disco repete a bem-sucedida parceria entre pai e filha de “Pós Você e Eu”, de 2016. Mais introspectivo que o trabalho anterior, mantém a formação exclusiva de voz e violão nas 17 faixas, que trazem versões de Arthur Nestrovski para canções do repertório erudito, canções de sua própria autoria e clássicos da música brasileira.
Estamos também iniciando uma jornada que começa “antes da luz do sol chegar”, conforme anuncia a letra feita para a "Sarabanda", de Bach. Popular gênero instrumental barroco, a sarabanda nasceu como uma dança cantada acompanhada pela guitarra espanhola, ainda no século 16.
O ciclo “Dichterliebe” –"Os Amores do Poeta", em português, de Robert Schumann–, com poemas de Heinrich Heine, é um dos mais importantes conjuntos de Lieder (canção erudita) do repertório alemão.
Cinco dessas canções ganham versões de Arthur Nestrovski, em diálogos com “Canção de Amor”, de Elano de Paula e Chocolate, e “Janelas Abertas”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. As duas canções brasileiras são do final da década de 1950, momentos antes do início da bossa nova, e de fato é um clima dolente, pré-bossa nova, que permeia todo o disco.
Lívia é uma cantora extraordinária, que canta sem disfarces. Com timbre límpido, “se joga” nos momentos que assim pedem, sem nunca ser excessiva. Às vezes, o registro agudíssimo é também etéreo, acompanhando o texto das canções.
O diálogo com o cancioneiro brasileiro é constante e aparece de diversas formas. O Dichterliebe 4º remete a "Pela Luz dos Olhos Teus" (“E quando a luz dos olhos teus / encontra a luz dos olhos meus”, inicia). Schumann acaba nos levando, afinal, à bossa nova, embora o clima leve do gênero nunca se imponha.
Da mesma forma que "Sarabanda", "Cisne", de Saint-Saës, também recebe letra de Arthur Nestrovski. “Olha que coisa mais irreal/ quando ela passa o chão parece mar”, abre a canção, numa referência ao clássico "Garota de Ipanema".
O amor irreal do Cisne dialoga com o “sobre-humano” amar de "Mais Simples", canção de José Miguel Wisnik lançada por Zizi Possi em 1996. É possível dizer que chegamos a um segundo momento do disco, dedicado a canções contemporâneas, com quatro inéditas de Arthur Nestrovski que também tratam de amor, seja nas memórias de um casal ("Bolero Sim") ou na sedução felina de "Duas Gatas".
Na terceira e última parte, dois estudos para violão de Fernando Sor ganham letra e depois dão lugar a "Anoiteceu", parceria de Francis Hime e Vinícius de Moraes. Agora, “a estrela d’alva no céu desponta”, conforme versão para Abendstern, de Schubert. Se a referência óbvia é "As Pastorinhas", de Dalva de Oliveira, também há algo do célebre poema “Estrela da Manhã”, de Manuel Bandeira.
Há algum tempo Arthur Nestrovski se dedica a versões de Lieder alemães, trazendo o gênero para mais perto do cancioneiro brasileiro. Ao mesmo tempo em que ele amadurece o projeto, parece encontrar em Lívia a intérprete ideal para a empreitada.
A sarabanda se insinua novamente, dessa vez para dizer que “pode o dia terminar”. Chegamos ao final dessa bela jornada amorosa com "Nacht und Träume", ou "Outra Noite", de Schubert, quando “sonhadoramente a noite vem caindo na cidade”.
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