Música que marcou panelaços na pandemia completa 50 anos em 2020

'Apesar de Você' foi lançada após desilusão de retorno do exílio; samba já clássico de Paulinho da Viola também aniversaria

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São Paulo

“Tinha que vir até aqui, ver os amigos e dar um mergulho na praia”, foi o que disse Chico Buarque a este jornal quando desembarcou no Brasil no começo de 1970, há pouco mais de 50 anos. Ele havia passado 14 meses exilado na Itália e, segundo o jornalista Humberto Werneck no livro “Chico Buarque Letra e Música”, retornou ao país depois de receber cartas de André Midani, diretor da gravadora Philips.

Midani havia dito que a situação da ditadura no Brasil estava melhorando, mas não foi isso que Chico encontrou quando retornou ao país. Na verdade, ele se incomodou com o clima ufanista –marcado pela frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”– que tomava o país, inflado pela postura do general Médici, pela conquista do tricampeonato mundial da seleção brasileira e até pelas canções populares, entre elas “Eu Te Amo Meu Brasil”, da banda de rock Os Incríveis.

Chico tinha programado o lançamento do disco “Chico Buarque Vol 4.”, além de shows e programas de TV. Nessa atmosfera, ele compôs e gravou —“com os nervos mesmo”, segundo Werneck— “Apesar de Você”, canção que se tornou um hino contra a repressão e a censura da ditadura no Brasil. Nos últimos panelaços contrários ao presidente Jair Bolsonaro, a música foi uma das tocadas nas janelas das casas durante a pandemia de coronavírus.

Curiosamente, Chico Buarque mandou a música à censura sem acreditar que seria aprovada. Para a surpresa dele, a faixa foi liberada e saiu em um compacto, junto à música “Desalento”.

“Apesar de Você” acabou vendendo 100 mil cópias na época, e o sucesso da canção —que, apesar de não ser literal, era “dedicada” a Médici— levou tropas do Exército a invadirem a Philips de Midani, a fim de destruir os discos.

“Apesar de Você” só foi relançada em 1978, ano em que este jornal entrevistou Gama e Silva, que foi ministro da Justiça do governo Costa e Silva, autor do AI-5. A reportagem pôs a música para tocar e pediu a opinião do ex-ministro.

“O ex-ministro permaneceu imóvel enquanto escutava; tentando controlar as expressões faciais. Mas ele não deixou que suas palavras também o traíssem e ditou com todas as vírgulas e pontos: ‘Essa música é uma beleza. A melodia é linda e a letra exprime um estado de alma e juventude, o que é perfeitamente compreensível. Aliás, apreciando, como eu aprecio a arte de Chico Buarque de Hollanda, só posso ter palavras de elogio ao grande compositor dos nossos tempos’.”

Não é possível saber se Gama e Silva estava sendo irônico, mas a interpretação não é descabida. Escutada sem contexto, “Apesar de Você” pode ser apenas uma música sobre um relacionamento conturbado, em que uma das partes quer se livrar da outra. É uma canção que conversa mais com o cotidiano do brasileiro do que uma faixa literalmente política.

Uma das pessoas que estava no desembarque de Chico no Brasil era Paulinho da Viola, ao lado de personalidades como MPB-4, Trio Mocotó, Nelson Motta, Betty Faria e da torcida Jovem Flu, do Fluminense. Um ano antes, Paulinho também lançou um dos clássicos da música nacional, a faixa “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, que acabou dando nome ao disco do cantor que saiu no ano seguinte.

A música é uma das maiores exaltações à escola de samba Portela, da qual Paulinho havia se tornado chefe da ala de compositores —graças à composição do samba-enredo do desfile de 1966, “Memórias de um Sargento de Milícias”, ano em que a escola foi campeã. Mas “Foi um Rio” só surgiu depois que o músico se sentiu em dívida com a Portela.

Isso porque, em 1968, Paulinho fez a melodia de “Sei Lá, Mangueira”, música que exaltava a Mangueira, rival da Portela, que ganhou letra do produtor Hermínio Bello de Carvalho. Contra a vontade de Paulinho, Hermínio inscreveu a canção no 4º Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record.

Para o desgosto do cantor, a faixa acabou chegando às fases finais da competição, na voz de Elza Soares, que levou o prêmio de melhor intérprete do festival. “Foi um Rio” foi feita como uma redenção de Paulinho com sua escola do coração.

Gravada de maneira simples, com cavaquinho, violões e percussão, a faixa se tornou um dos maiores sucessos de 1970, quando foi regravada dezenas de vezes —por nomes como Elizeth Cardoso e Nelson Gonçalves, entre outros. A canção saiu num compacto, junto a “Sinal Fechado”, “Ruas que Sonhei” e “Nada de Novo”.

Além de fazer as pazes consigo mesmo e de entrar de vez na história da Portela, Paulinho da Viola teve na canção o maior hit de sua carreira até hoje.

Mas uma das curiosidades do compacto duplo em que "Foi um Rio" foi lançada é que "Sinal Fechado" era a música em destaque na capa do produtor. A música havia sido vencedora do festival da Record em 1969, o que levou a gravadora a acreditar que faria mais sucesso que a ode à Portela.

"Sinal Fechado" é considerada uma letra que reflete o sentimento da época. A canção ficou ainda mais conhecida em 1974, quando foi regravada por Chico Buarque —o que levou muitas pessoas a pensarem que a composição era do próprio Chico.

Ofuscada por "Foi um Rio", a música, segundo Paulinho da Viola, em entrevista ao UOL no ano passado, não foi feita como uma música contra a dituradura, apesar de casar com o clima de repressão.

"O que me inspirou foi uma pessoa que eventualmente me encontrava na rua e falava 'preciso muito falar com você', mas ia embora sem dizer nada. Isso acontecia, não foi apenas uma vez. E eu achava aquilo estranho. 'Tenho uma coisa importante para falar', e nada. Usei isso de mote para fazer 'Sinal Fechado', que de certa forma reproduzia muito o clima da época, o clima de tensão, de preocupação", ele disse.

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