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'A Vida Invisível', filme de Karim Aïnouz, se passa em 1950, mas poderia ser hoje

Longa com Fernanda Montenegro, Gregorio Duvivier e Julia Stockler, foi discutido no Ciclo de Cinema e Psicanálise

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São Paulo

A avó da atriz Julia Stockler era pianista, mas seu avô nunca a ouviu tocar. “Ela dizia ‘às 11h vou tocar piano porque sei que no prédio da frente tem uma vizinha que gosta’. Isso porque o marido não a escutava”, contou a atriz durante debate do Ciclo de Cinema e Psicanálise, realizado nesta terça-feira (6), em formato virtual.

O evento debateu o filme “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, que se passa no Rio de Janeiro dos anos 1950 e conta a história de duas irmãs. No longa, Stockler vive a impositiva Guida, que se apaixona por um marinheiro, o segue até o exterior e engravida antes do casamento. Já a mais contida Eurídice, papel de Carol Duarte, está resignada a se casar virgem com um sujeito sem graça.

Ao lado de Stockler, participou do debate a psicóloga e psicanalista Alice Paes de Barros Arruda, sob mediação da também psicanalista Luciana Saddi. Foram unânimes na avaliação de que, embora o filme se passe no século passado, a sensação é de que poderia muito bem ter acontecido hoje.

“São duas mulheres, mas poderia ser toda e qualquer mulher que tenta preservar um mínimo de desejo pessoal de singularidade num regime que achata expectativas e tritura sonhos com a intenção de impor submissão das mulheres aos homens”, afirmou Saddi.

Stockler conta que a ideia de retratar “mulheres dos anos 1950” nunca foi um norte para a equipe. “O pensamento que nos guiou foi ‘mulheres que sofrem abusos psicólogos, relações tóxicas, pais e maridos que são sujeitos de agressividade passiva'. E isso é um sentimento que eu carrego hoje, em 2020. A gente carrega no Brasil. O filme foi feito nos anos 1950 para dar luz ao que ainda acontece. A coisa ainda é terrível.”

No longa, um segredo faz com que essas duas irmãs percam o contato durante décadas. “Como lidar com a ausência de uma irmã tão unha e carne se fazendo viva sem sua presença?", pergunta Arruda.

Cheio de simbolismos, o filme mostra duas irmãs fisicamente separadas, mas ligadas pelo imaginário, cada uma fantasiando o que a outra irmã estaria vivendo. “As duas sempre estão com um brinco que parece um talismã, símbolo da outra, de afeto e de força diante dos percalços”, acrescenta a psicanalista. “Elas permanecem ligadas, mas fisicamente distantes."

Guida, por exemplo, fantasia a irmã dando concertos em salas lotadas, fazendo muito sucesso no exterior e escreve cartas para ela. "Era uma forma de simbolizar e deixar a ausência presentificada através dessas lembranças que se colocam ali", analisa Arruda.

Stockler concorda e enxerga no ato de escrever uma forma de escape da realidade. “O sonho é um motor do movimento. Quando se acaba com os sonhos, não conseguimos levantar da cama”, diz.

Segundo a psicanalista e terapeuta Alice Paes de Barros Arruda, o filme pode ser pensado em torno de um único eixo, de pares antitéticos como presença e ausência, lembrança e esquecimento, homem e mulher.

“A vida invisível é o apagamento do desejo, a chama que vai se extinguindo até morrer. A vida visível é uma rotina robotizada. Eurídice é tragada pela vida doméstica e patrimonial, esmagada pelo peso da autoridade e empurrada para o casamento conveniente para o negócio do pai.”

Stockler também vê a obra como um filme sobre o amor. “O amor pela música, o amor quando Guida sai de casa porque se apaixona por um grego e volta para o amor do pai, tão tóxico, machista e patriarcal.”

Mas, como ela observa, o amor é complicado e vai sendo sufocado. “O filme fala do silêncio dessas mulheres diante de uma estrutura tão monstruosa que o homem é capaz de exercer sobre nossos sonhos, corpos e desejos.”

O longa de Karim Aïnouz é baseado no romance "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", da escritora Martha Batalha e foi vencedor da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes.

O Ciclo de Cinema e Psicanálise é promovido quinzenalmente pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com apoio da Folha e do Museu da Imagem e do Som. O debate pode ser conferido no canal do MIS. No dia 20 de outubro, será debatido “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón, que levou Oscar de melhor direção, filme estrangeiro e fotografia na premiação do ano passado.​

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