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Abel Ferrara é um vulcão e provoca em dose dupla na Mostra de São Paulo

'Sibéria' é uma obra de autor tradicional, e 'Sportin'Life' complementa longa que causou polêmica no Festival de Berlim

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Sibéria

  • Onde Mostra Play (plataforma online da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)
  • Elenco Willem Dafoe, Dounia Sichov e Simon McBurney
  • Produção Itália, Alemanha e México, 2020
  • Direção Abel Ferrara

Sportin’Life

  • Onde Mostra Play (plataforma online da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)
  • Produção França, 2020
  • Direção Abel Ferrara

Se um dia eu encontrasse Abel Ferrara não seria para lhe perguntar sobre seus filmes, mas sobre como ele se relaciona com os romances de Georges Bernanos. São dois homens muito parecidos (embora muito diferentes). Mas “Sibéria”, o novo filme de Ferrara, me fez lembrar muito de “Sob o Sol de Satã”, em que um padre, quanto mais é perfeito em sua devoção a Deus, mais —e por isso mesmo— é perseguido pelo demônio.

“Sibéria” é o que se pode chamar de um filme de autor à maneira tradicional: um homem procura por si mesmo ao longo de pesadelos, delírios, encontros. É com a dor da vida que se confronta o velho homem, que pode estar no surgimento repentino de monstros que tentam devorá-lo, nos eventuais momentos de amor, nos mais frequentes de remorso.

O que é um homem? —talvez seja a pergunta que resume “Sibéria”, mediada por outra questão: quem sou eu, Abel Ferrara? Compreende-se que o crítico do The Guardian tenha deixado a sala no meio da exibição no Festival de Berlim.

Festivais são a única situação em que críticos podem se dar o abusivo direito de deixar um filme pelo meio, tal é o bombardeio de imagens a que é submetido (e que corresponde em geral a uma proporcional incapacidade de raciocínio sobre eles). Aceitemos.

Pessoalmente, penso que ele saiu perdendo. Sim, a reflexão de Ferrara tem, como sempre, um apoio metafísico. Deus, a fé, o erro, o pecado, são suas balizas. Pode-se gostar ou não.

Tudo isso já estava, de outra forma, em seus belos filmes dos anos 1980/90. Agora ressurgem, não na forma do desespero de seus filmes de juventude, nem na contemplação serena da vida que se pode esperar da maturidade. Ferrara é um vulcão.

É no meio de um deserto de neve (e vez por outra de areia mesmo) que se perguntará se “este é o lugar do mundo em que a resposta é ‘sim’?” Não. Nesse deserto branco ele está perdido com seus cachorros, suas ruínas, seus fantasmas, eventuais visitantes, a perguntar-se onde está o mal e como será possível evitá-lo.

Não é possível, pois Abel já contém Caim —o que não torna menos interessante esse inventário pessoal inclemente de uma existência.

A respeito das polêmicas que o filme causou em Berlim é preciso admitir, primeiro, que Ferrara une os fragmentos dessa aventura atemporal (ou não-cronológica, em termos narrativos) com a habilidade necessária para deixar o espectador intrigado sempre e apaixonado, por vezes.

Em outros momentos, o espectador pode sentir-se desconectado —nesses momentos pensará que o valor das fantasmagorias que habitam o cineasta não é tão universal assim.

Esse objeto estranho precisa de tempo para que seja de fato possível discernir se se trata de uma obra-prima, como alguns pretenderam, ou de uma dessas obras-primas que ninguém se conforma em rever (para parafrasear Jorge Luís Borges, o gênio literário).

Nesse sentido, “Sportin’Life” apresenta-se como um complemento quase indispensável a “Sibéria”. Ao menos uma continuação. Trata-se de um documentário filmado basicamente durante o Festival de Berlim (2020, pré-pandemia).

Em dado momento um intruso pergunta sobre o que é este documentário. ´Ferrara responde, gentil: “É sobre o ato de fazer um documentário”. Em outras palavras, o intruso não é um intruso. Não há intrusos possíveis, porque a intrusão é o próprio princípio do filme. Tudo parece juntar-se caoticamente: Willem Dafoe falando sobre o trabalho em comum com Abel, uma banda de rock, trechos de filmes antigos (ou nem tanto, como seu “Pasolini”, com Dafoe como um perfeito Pasolini), as entrevistas protocolares próprias de festival...

Cena do documentário 'Sportin’Life'
Cena do documentário 'Sportin’Life' - Divulgação

Nem tão protocolares assim. Alguém pergunta como vê o futuro do cinema. Abel responde que com todo otimismo. Hoje todo mundo tem uma câmera no seu celular, basta abri-la e filmar. Eis o cinema —é mais ou menos essa sua resposta irretocável. Não será por acaso de cinema a cena do policial matando um homem negro em Minneapolis? Não existe graças ao cinema? Para o cinema? “Filme tudo”, diz Ferrara a horas tantas. Eis o princípio: a cena célebre e repugnante aparece no filme. Filme tudo.

Nesse filme parece que tudo entra. Inclusive um vulcão. Ou a reflexão de uma moça: “Não somos pecadores porque pecamos. Pecamos porque somos pecadores”.

É o que parece melhor resumir a visão trágica da existência humana, tal como a concebe Abel Ferrara, que desemboca inevitavelmente na imagem do corpo de Cristo crucificado, que concentra o destino humano. “Sinto a obra do Diabo na Casa de Deus” —é o que se diz em algum momento. E não é por nada que pouco depois aparece Trump com a Bíblia na mão, como exemplo cabal da frase.

Sim, porque Trump, nisso tudo, nesse milk shake nem tão metafísico assim, é um personagem central: o homem da morte, o propagador da morte. E mais rock: a felicidade e a dor de existir parecem estar ali, naquele palco, naquelas músicas. Ferrara tira o celular e filma o baterista.

E ao fim a pergunta: como essa adição de cenas e situações tão díspares vai formando, secretamente, uma unidade tão forte? Sim, ver “Sibéria” é obrigatório. Mas será que rever proporcionará o mesmo prazer? Ver “Sportin’Life” é um prazer que completa e até corrige “Sibéria”; rever desde já parece que será a renovação desse prazer.

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