Ativistas falam em sangue que pinga de peças africanas na Europa ao pedir retorno

França, Alemanha e Reino Unido fazem inventários e Holanda inicia repatriação, mas não há consenso sobre devolução

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Escultura de marfim do Benim que foi exibido no British Museum, em Londres

Escultura de marfim do Benim que foi exibido no British Museum, em Londres Suzanne Plunkett/The New York Times

Bruxelas

“Não gosta de saques? Você vai odiar o Museu Britânico.” Fotografado numa manifestação do Black Lives Matter em junho deste ano em Londres, o cartaz reflete uma crítica crescente a grandes coleções europeias —a de que suas prateleiras expõem arte pilhada por seus impérios coloniais.

Sob pressão ou voluntariamente, governos da França, do Reino Unido, da Alemanha e da Holanda, entre outros, se movimentaram para catalogar objetos e discutir o que, como e quando devolver.

Há pedidos da América Latina —o México pede o penacho de Moctezuma, artefato do século 16 que está no Museu de Etnologia de Viena— e da Ásia, mas a principal tração do debate recente na Europa vem da África.

Nigéria, Benim, Senegal, Etiópia, Chade, Madagascar, Mali e Costa do Marfim são alguns dos que reclamam seus antigos artefatos.

Neste mês, por unanimidade, a repatriação de objetos do Benim e do Senegal foi autorizada pela Assembleia Nacional da França. Parte já havia sido devolvida temporariamente no ano passado, mas o retorno definitivo dependia de permissão legal.

Na França, como na Espanha, na Itália e na Bélgica, a Constituição impede que coleções nacionais sejam desfeitas. Mesmo no Reino Unido, que segue tradição diferente do direito, museus nacionais são proibidos de desfalcar suas prateleiras, e o Museu Britânico é protegido por uma lei especial, de 1963.

Naquela década, muitos países africanos pediram a restituição de seu patrimônio assim que se tornaram independentes, sem resultados. A Unesco, a agência da ONU para educação, ciência e cultura, assumiu a pauta, proibindo o comércio de objetos saqueados durante o período colonial e pedindo sua restituição, em convenção dos anos 1970 e 1980, ainda com progressos tímidos.

Temendo ver suas grandes coleções esvaziadas, as antigas potências europeias demoraram a ratificar a convenção. A França assinou em 1992, o Reino Unido, em 2002, e a Alemanha só em 2007. No meio tempo, 18 dos principais museus da Europa e dos Estados Unidos assumiram outro lugar no debate, emitindo em 2002 uma “declaração sobre a importância e o valor dos museus universais”.

“Objetos adquiridos por compra, presente ou simplesmente trazidos se tornaram com o tempo parte dos museus que cuidaram deles e da herança das nações que os abrigam”, defendiam. Segundo eles, a aquisição de objetos deveria ser entendida no contexto da época em que foi feita, e não sob o consenso político e cultural atual.

Mas em 2007 uma nova declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas reanimou as ex-colônias. A Etiópia pediu em 2008 “tesouros saqueados” expostos em museus britânicos, o Egito solicitou objetos do Louvre em 2009, a Nigéria requisitou obras de museus americanos e britânicos em 2012 e 2017, e o Benim pediu em 2016 à França que devolvesse o que foi levado sem consentimento.

Um dos problemas está justamente na questão do consentimento, dizem historiadores. Grandes coleções etnográficas são uma marca do colonialismo imperialista, mas nem tudo o que está nesses museus foi pilhado.

Peças foram trocadas por produtos europeus, presenteadas em cerimônias oficiais e esforços diplomáticos, ou recolhidas por exploradores, missionários, comerciantes, militares e funcionários públicos em suas viagens ultramar. E muitos desses proprietários doaram as obras sob condição de que elas sejam mantidas pelo museu para sempre.

Se a discussão sobre legitimidade é complexa, alguns defendem a solução política mais ampla possível –devolver todos os objetos, independentemente de como eles saíram de seus países, propõe a historiadora francesa Bénédicte Savoy.

Com o escritor senegalês Felwine Sarr, Savoy catalogou —a pedido do presidente Emmanuel Macron— os cerca de 90 mil artefatos da África subsaariana que estão na França, num relatório. Mais da metade está no museu Quai Branly, em Paris, que no mês passado foi alvo de um “roubo-performance”.

Filmado por colegas, o congolês Emery Mwazulu Diyabanza arrancou uma escultura de madeira do Chade de seu suporte e saiu brandindo o objeto pelos corredores enquanto gritava “tudo o que está aqui foi pilhado na colonização, esta é uma riqueza que nos pertence e agora vai voltar para casa”.

O ativista tentava acelerar o processo de devolução prometido por Macron em 2017. Sua sentença saiu há uma semana, dias depois da votação unânime na Assembleia francesa. Diyabanza foi condenado por roubo qualificado e multado em € 1.000, cerca de R$ 6.600.

Enquanto comissões faziam inventários e desenhavam políticas de repatriação na França, na Alemanha e no Reino Unido, museus holandeses começaram a agir sem esperar por pedidos de restituição.

Na Holanda, o Museu Nacional de Culturas Mundiais se comprometeu a devolver todas as peças identificadas como roubadas da era colonial. Entre elas estão bronzes do Benim, artefatos e placas de latão, marfim, cerâmica e madeira retirados de um palácio real durante a colonização e espalhados por diferentes países. Em 2018, os museus fizeram um acordo para permitir que eles integrassem o Museu Real da Nigéria, que deve ser inaugurado em 2021.

A nova casa é uma de várias projetadas nas ex-colônias, como o Museu das Civilizações Negras de Dacar, no Senegal, o Centro de Arte Javett, na Universidade de Pretória, o Museu de História Nacional, na República Democrática do Congo, e o Centro JK Randle para a Cultura e História Iorubá, na Nigéria, todas à espera de peças repatriadas.

Mas nem todos os países querem receber objetos de volta, por falta de recursos para armazenar, expor e garantir a segurança dessas coleções. Alguns também temem que os objetos reabram conflitos internos ou consideram que museus de prestígio europeus são vitrines poderosas para as culturas africanas.

Outro argumento é o de que coleções europeias estão em cidades multiculturais, e muitos de seus visitantes têm origem nas mesmas nações que produziram as obras de arte. O diretor do britânico Vitória & Albert, Tristram Hunt, é um dos que defendem a visão mais integrada dos problemas criados pelo imperialismo.

Mais museus globais, em vez de menos, é a proposta do historiador britânico –em vez de simplesmente tirar da vista europeia o passado colonial, acrescentar a ele reflexão e contexto, nos ex-impérios e nas ex-colônias, reforçando empréstimos e parcerias.

É um debate quente também na Alemanha, que se prepara para inaugurar em dezembro o Fórum de Humboldt, num palácio real reconstruído no centro de Berlim. A proposta é que ele abrigue mais de 50 mil peças das coleções etnológicas da capital alemã, que estariam expostas a partir de 2022.

A direção do Fórum se adiantou ao comunicar que já criou grupos de trabalho com os países de origem e com especialistas internacionais, para garantir que, além dos objetos expostos, o museu trate da forma como eles foram obtidos.

Saudada por alguns, a precaução não convence críticos como a francesa Bénédicte Savoy, que fazia parte do conselho do Fórum. "Quanto sangue está pingando desses artefatos?”, perguntou, ao se demitir do cargo há três anos.

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