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Chris Fuscaldo

Ato de filho de Renato Russo equivale a censura aos fãs e pesquisadores

Investigação policial detonada a pedido de Giuliano Manfredini é tentativa de intimidação

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Em maio do ano passado, policiais assustaram um fã da Legião Urbana ao entrar em sua casa, numa zona de milícia da Baixada Fluminense. O aposentado por invalidez tomou um susto, as filhas pequenas ficaram com medo e a mulher diabética passou mal.

Decidi acompanhar mais de perto o processo que acusou Josivaldo Bezerra da Cruz Júnior, na época com 38 anos, e fiquei indignada com a violência sofrida por ele. Apreenderam celular e notebook, prejudicando em muito suas atividades cotidianas. O fã mantém (desde os tempos de Orkut) um perfil no Facebook com o nome de Ana Paula Ülrich e, com esse pseudônimo, é um dos administradores da página Arquivo Legião, a qual todo legionário que se preze recorre para ficar por dentro das novidades sobre livros, discos, raridades divulgadas por alguém etc. A única matéria publicada por um jornal carioca naquela ocasião, no jornal O Dia, já colocou o acusado na posição de criminoso.

Com seu grande potencial de pesquisadora, Ana Paula foi virando uma popstar entre os legionários, a mais famosa fã, amada e desejada por vários deles. Até eu, como pesquisadora, conversei bastante com a Ana Paula. Marcelo Froes, também pesquisador e produtor musical, trocava muita ideia com ela.

Mantive contato com Josivaldo, que a mim não surpreendeu quando disse que era a pessoa por trás da Ana Paula (o perfil dava muitas pistas de que se tratava de uma personagem), e conheci a sua triste história de vida. Quase cego por causa de um glaucoma, Josivaldo disse que não teria compartilhado nada que já não tivesse sido publicado por outras fontes, nem havia vendido ou comprado material algum. Como um bom jornalista faz, ele pedia exclusividade para a divulgação na página Arquivo Legião.

Uma das perguntas, no depoimento, foi se ele roubou material dentro do apartamento de Renato Russo. No entanto, a primeira vez que Josivaldo esteve em Ipanema foi no ano passado, com a ajuda de um amigo (se não for assim, ele não consegue sair de casa), para se reunir com seu advogado.

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, diz a Constituição. Mas nenhum outro veículo de imprensa deu a ele a chance de falar.

Quase um ano após o segundo depoimento de Josivaldo, na última segunda-feira, o produtor musical e jornalista Marcelo Froes também despertou com a polícia entrando em seu home studio, recolhendo seu equipamento de trabalho e o intimando a depor, parte da mesma Operação Será.

Com o profissional, morador de Botafogo, muito mais privilegiado do que Josivaldo, a abordagem foi bem diferente. O próprio delegado foi à casa de Marcelo e, educadamente, deu pistas de que ele estava sendo investigado por ter trocado mensagens com Ana Paula. Depois que a imprensa descobriu que se tratava de “um dos nossos”, Marcelo ganhou espaço para quantas entrevistas quis dar a diversos veículos.

Enquanto isso, cada vez mais Josivaldo foi sendo tratado como um criminoso, o pivô que levou à apreensão do material do produtor, o cara que fez tudo errado. Errou? Pode ser que sim. Criminalmente? Está parecendo que não, afinal, já se passaram quatro anos do início da investigação e até agora não houve denúncia do Ministério Público.

Durante a semana, soube que vários colegas jornalistas tinham tido acesso à notícia-crime, documento policial curto que traz apenas o ponto de vista do acusador, Giuliano Manfredini —o inquérito todo contém centenas de páginas.

Também pude conversar com Josivaldo, Marcelo Froes, profissionais que trabalharam com Giuliano, advogados, pesquisadores e todos foram unânimes ao concordar comigo. Se o herdeiro do Renato Russo sair vitorioso (e a gente sabe que a imprensa tem papel fundamental na crítica ao ocorrido), será aberto um precedente perigosíssimo para nós, jornalistas, escritores, documentaristas, produtores etc.

Mal comparando, o ocorrido é como a proibição do livro sobre Roberto Carlos. É uma espécie de censura. Ontem, bateram na casa do Josivaldo e do Marcelo Froes. Amanhã, podem bater na minha alegando que, porque fiz um livro sobre Legião Urbana, pode ser que eu tenha material inédito. Ou podem bater na porta de outros fãs, que compram, vendem e colecionam material inédito (há muitos por aí).

Paulo César de Araújo, autor da biografia de Roberto Carlos, chegou a me dizer que essa tal Operação Será parece pior do que o que ele passou quando teve seu livro proibido após um processo do Rei. “Pelo menos não tive polícia entrando na minha casa e apreendendo meu material de pesquisa.”

O jornalista Ricardo Alexandre reiterou nas redes sociais. “Um ponto que está passando totalmente à margem da discussão pública e que, para quem vive o sacerdócio de trabalhar com cultura neste país, é o ponto mais apavorante. Eu tenho material inédito de vários artistas na minha casa. Aliás, o jornalista vive de conteúdo inédito ou raro -—sejam fotos, entrevistas, memorabilia, acervo. Isso é crime? Estou correndo risco de a polícia invadir meu apartamento e levar meu equipamento de trabalho? É disso que se trata.”

E é disso que se trata o que vocês, leitores, estão acompanhando pela imprensa e o que nós, pesquisadores, estamos vivendo. Estaremos perdidos se um herdeiro ganhar o direito de acusar quem ele acha que tem coisas que ele gostaria de ter, e a polícia começar a investigar levando o equipamento de trabalho das pessoas.

Segundo fontes, o jornalista Luiz Fernando Artigas —que trabalhou com política em Brasília, entende bastante de gerenciamento de crise e é contratado da Legião Urbana Produções— é quem arquiteta há anos as estratégias de Giuliano Manfredini.

Juntos, eles assistem de Portugal, onde moram, ao circo armado depois que Giuliano fechou o diálogo com muita gente do mercado da música e, conforme amplamente noticiado na imprensa, com sua própria família e com ex-parceiros profissionais.

Uma estratégia que parece seguir padrões políticos é a transmissão a fãs de informações que muitas vezes soam como fake news, o que, a meu ver, endossa o projeto de manutenção de uma estupidez coletiva, tipo aquela que fez com que muita gente acreditasse em mamadeira de piroca e kit gay.

Um exemplo é o comportamento dos fãs fanáticos pelo herdeiro. Fontes que frequentaram a roda me disseram que Giuliano só me chama de “amiga do Dado e do Bonfá”. Um dos legionários fanáticos me atacou em comentários durante uma live, me chamando justamente de “amiga do Dado e do Bonfá”.

Como bem disse Marcelo Froes em entrevista à revista Veja, “cada vez que coisas como essas acontecem, cria-se uma má vontade entre os produtores e ninguém aceita mexer mais nisso". "Falar do espólio do Renato Russo virou um assunto chato, triste, baixo astral”.

E a coisa ainda pode piorar. Segundo a advogada de Giuliano Manfredini, “a investigação vai muito além de fãs divulgando material utilizado na internet”. E agora, quem de nós terá que abrir a porta para a polícia?

Acho que não dormirei em paz até que recursos públicos parem de ser usados para satisfazer quem tem muito dinheiro particular para manter processos como esse tramitando "ad aeternum" ou até que o equipamento que auxilia o dia a dia do quase cego Josivaldo e o material de trabalho de Marcelo Froes sejam devolvidos (o do Josivaldo já está há um ano e meio com a polícia).

Dois avisos: não tenho nada inédito da Legião Urbana em minha casa e não me importo se, agora, meu apelido mudar para “amiga do Josivaldo e do Marcelo Froes”.

Chris Fuscaldo é jornalista e autora do livro "Discobiografia Legionária" (ed. Leya)

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