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Documentário sobre ditadura militar é um tributo à memória

'Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil' levanta fissuras e contradições de família vítima do golpe de 1964

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Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil

  • Quando Sexta (2), às 21h, e sábado (3), às 15h; também no sábado, às 17h, debate online com a diretora, os coprodutores João Moreira Salles e Leandra Leal, e a montadora Marília Moraes. Acesso gratuito
  • Onde etudoverdade.com.br
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Carol Benjamin

Primeiro filme dirigido pela carioca Carol Benjamin, “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil” é como um renda tecida por fios de diferentes texturas.

O resultado é a delicadeza como sinônimo de apuro, não de fragilidade. Essa confecção intrincada conduz a um dos filmes mais potentes da safra brasileira recente sobre a ditadura militar.

Depois de ganhar no ano passado menção especial do júri do Festival de Documentários de Amsterdã, o principal do mundo nesse gênero, “Fico te Devendo” tem sua première no Brasil no É Tudo Verdade.
É a chance de ver uma costura reveladora sobre o país que herdamos dos nossos pais e aquele que vamos deixar para os nossos filhos.

O primeiro fio do filme é a história de Iramaya Benjamin, avó da diretora. “Dona de casa pacata”, como se descrevia, ela se converteu numa destemida militante contra os abusos da ditadura depois da prisão de seu filho mais velho, Cid, e do caçula, César.

Casada com um oficial do Exército, Iramaya conhecia alguns dos militares responsáveis pela repressão no Rio de Janeiro. Sobre um deles, escreveu numa carta que “ele beijava minha mão e depois torturava meu filho”.

Ela se referia nessa frase ao filho mais novo, César Benjamin, pai de Carol e segundo fio do documentário.

Ligado à organização marxista MR-8, ele foi preso ilegalmente em 1971, aos 17 anos. Ficou trancafiado por mais de cinco anos, dos quais três e meio em solitárias minúsculas. Recebia choques elétricos com frequência.

Dada a gravidade dos atos violentos a que foi submetido, denunciados continuamente por Iramaya, o caso dele recebeu atenção da Anistia Internacional, principalmente do escritório de Estocolmo.

O terceiro fio tem como protagonista a própria Carol, que conta nunca ter ouvido do seu pai as lembranças desses dias terríveis na prisão. Ela vai, então, à capital sueca para encontrar uma integrante da Anistia que havia se tornado, ao longo dos anos 1970, amiga e confidente de Iramaya.

Além de expor outros novelos do drama familiar, essa viagem a Estocolmo mostra com nitidez a figura extraordinária que foi Iramaya, morta em 2012.

E há, por fim, o quarto fio, que entrelaça todos os outros, a história recente do Brasil, do golpe de 1964 à chegada ao poder de Jair Bolsonaro, que jamais titubeou em apoiar o aparato repressivo que quase destroçou a família Benjamin.

Em mãos inábeis, essa aposta numa rede de tramas e subtramas acabaria num filme confuso. Não é o que acontece em “Fico te Devendo” devido a um trabalho obsessivo de pesquisa e a uma montagem que prima pela clareza.

Graças ainda a um cuidado de Carol, diretora e personagem, de evitar que suas inquietações se sobreponham às da sua avó e do seu pai. Os dramas de cada membro das três gerações iluminam os dos demais.

Com essas intersecções, o documentário dialoga com a obra mais recente de João Moreira Salles, um dos produtores do filme de Carol.

Como “No Intenso Agora”, de 2017, de Salles, “Fico te Devendo” é um tributo à memória. Num nível mais evidente, a falta dela fragiliza a vida política do país; noutro, afeta as relações pessoais, como ocorreu com os Benjamins.

Carol Benjamin levanta fissuras e contradições da sua própria família. Mas seria ainda mais coerente se tivesse registrado que seu pai, César, atuou como secretário de Educação do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, aliado de Bolsonaro.

Há fios soltos em “Fico te Devendo”, mas nada que retire a dignidade do filme.

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