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Escritor John Banville mata seu pseudônimo literário em novo romance policial

'Snow' deveria ser assinado por Benjamin Black, mas autor irlandês diz que não precisa mais 'desse pilantra'

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Charles McGrath
The New York Times

O romancista irlandês John Banville é conhecido por ser perfeccionista –o tipo de escritor que é capaz de passar um dia inteiro polindo uma única sentença.

Escritos em sua maioria na primeira pessoa, seus livros são burilados, complexos, nabokovianos. Invariavelmente, vêm carregados de palavras que parecem ter sido incluídas para provar que o vocabulário de Banville é maior do que o nosso –flocoso, crapuloso, decíduo, anaglypta (papel de parede em relevo), mefítico, velutíneo.

Um romance de Banville geralmente leva quatro ou cinco anos sofridos para ser concluído, ao término dos quais o autor continua insatisfeito. Em entrevista de 2009, ele disse à The Paris Review que odeia seus próprios livros. “São um constrangimento e motivo de vergonha profunda para mim”, disse. “São melhores que os de qualquer outro autor, é claro, mas não são bastante bons para mim”, acrescentou.

Escritor irlandês John Banville é retratado em Dublin - Derek Speirs/The New York Times

Mas, em março de 2005, quando estava hospedado na casa de um amigo na Itália, Banville se sentou numa manhã e, por algum motivo, começou a escrever um romance policial ambientado na Dublin dos anos 1950. Na hora do almoço ele já tinha 1.500 palavras no papel –tanto quanto conseguiria escrever em uma semana em seu ritmo usual. Ele pensou consigo mesmo: “John Banville, você não vale nada”. Mas continuou a escrever e terminou o livro em cinco ou seis meses.

“Fiquei um pouco chocado com a rapidez com que terminei”, ele disse em email recente. Ele andara lendo Simenon –mas não os policiais sobre o Inspetor Maigret— e, inspirado por ele, quis ver o que poderia ser realizado com um vocabulário reduzido e um estilo enxuto e direto.

Esse livro, “Christine Falls” —sobre um médico chamado Quirke, que bebe muito e cujo cargo de patologista no instituto médico-legal de Dublin o deixa perto de muitos cadáveres— foi publicado em 2007 e assinado com o pseudônimo Benjamin Black.

O pseudônimo não chegou a ser um disfarce, já que livreiros e críticos souberam desde o início que o autor era Banville. Mas sim uma maneira de indicar que John Banville tinha uma outra metade sombria que estava fazendo algo diferente.

“Como Black, decidi escrever no estilo mais enxuto e simples possível”, ele disse. “De vez em quando Banville tentava o obrigar a ir mais devagar e a se deleitar com as sentenças, e ele precisava se precaver contra isso. Sempre digo que o que você recebe de Black é fruto da espontaneidade, enquanto, em Banville, é resultado de um pico de concentração.”

Banville pensara em escrever só um romance sobre Quirke, mas seis outros seguiram o primeiro, além de quatro livros de Black que não eram sobre Quirke, incluindo uma imitação de Raymond Chandler e um romance que imagina as duas princesas britânicas Elizabeth e Margaret isoladas na Irlanda durante a Segunda Guerra Mundial.

Esses livros não o deixaram rico, ou não tão rico quanto Banville esperava, mas lhe deram um público novo. Os livros de Black são tudo que os de Banville não são –bem delineados, com tramas articuladas, impelidos pelos diálogos—, e alguns leitores infiéis chegam a confessar que hoje os preferem aos de Banville.

Enquanto isso, Banville, avançando devagar como de costume, escrevendo à mão em cadernos lindamente encadernados (diferentemente de Black, que usa computador), conseguiu concluir quatro livros próprios desde que Black apareceu.

O mais recente deles, “Mrs. Osmond”, de 2017, é uma sequência de “Retrato de uma Senhora”, de Henry James, escrito numa imitação perfeita do estilo de James. Esse livro foi um pouco mais fácil de pôr no papel que a maioria, contou Banville.

“Para minha surpresa, descobri que eu tinha a ‘voz’ de H.J., ou algo semelhante, desde o início.” Houve dias em que ele saiu para fazer uma caminhada e, ao voltar, se sentiu como se outras duas páginas tivessem sido redigidas em sua ausência. “Eu estava tão desapegado que, de vez em quando, me reclinava para trás e observava minha caneta tinteiro desenhando as linhas”, disse. “Uma sensação peculiar.”

O romance mais recente de Banville, “Snow”, é mais um policial, também ambientado na Irlanda dos anos 1950, se bem que em lugar de Quirke traga um novo detetive, St. John (pronunciado à moda aristocrática: “sinjun”) Strafford, um jovem da classe latifundiária protestante.

O livro saiu dois anos atrás na Espanha, país onde Benjamin Black é incomumente popular –por motivos que Banville pensa que podem estar ligados à parte da história compartilhada pela Espanha e Irlanda no século 20: guerra civil, a hegemonia da Igreja e uma escuridão no coração do caráter nacional.

Mas, quando “Snow” sair nos Estados Unidos, em novembro, a capa dirá em letras garrafais “John Banville”, e não “Benjamin Black”. Black, disse Banville recentemente, muito cordialmente se deixou matar –se bem que terá que continuar vivendo na Espanha, criando um enigma para críticos e bibliógrafos, porque ele é popular demais para morrer.

O que aconteceu, diz Banville, é que, ao reler alguns dos livros de Black, ele decidiu que eram melhores do que ele se lembrava que fossem. “Fiquei surpreso e altamente satisfeito por descobrir que os livros não eram nada maus –na realidade, talvez até fossem bastante bons”, explicou.

“Entenda, sou um desses escritores que não gosta de seu próprio trabalho e tem vergonha dele. Procuro a perfeição, e, como sabemos, a perfeição está muito além de nossos parcos poderes. Mas, quando descobri que gostava dos livros de Black, eu disse a mim mesmo, ‘por que preciso desse pilantra, afinal?’. Então o encerrei num cômodo com uma pistola, um vidrinho de soníferos e uma garrafa de uísque escocês, e foi o fim dele."

"Nunca me envergonhei do que Black escreveu nem senti que o precisava defender. Seus livros são obras artesanais, escritas honestamente e sem pretensão.” Com a malícia característica, ele acrescentou: “Não que eu considere a pretensão necessariamente uma coisa ruim em um escritor”.

Banville, que tem 74 anos, cresceu no condado irlandês de Wexford, lugar que considerava provinciano e entediante. Quando garoto, adorava visitar uma tia sua em Dublin, cidade que achava muito mais instigante, e um pouco desse clima novelesco está presente nos livros sobre Quirke, em que a própria cidade –com suas vistas e seus cheiros, seu ambiente de segredo e repressão, especialmente no que diz respeito a questões sexuais— é praticamente uma personagem. Banville não precisou pesquisar muito, disse. A maioria dos detalhes fluiu de sua memória.

Banville diz que continua fascinado pela Irlanda dos anos 1950, em especial pelo modo como “Igreja e Estado cooperavam para conservar as pessoas infantilizadas, a Igreja por meio da lavagem cerebral precoce, o Estado com a censura abrangente e as mentiras oficiais”.

“Snow” é ambientado numa grande propriedade rural pertencente a protestantes, onde um padre católico é assassinado sob circunstâncias embaraçosas.

O ambiente é enriquecido pelo que Banville descreve como “o fascínio de um camponês pelos anglo-irlandeses como classe aristocrática –de fato, como casta”. Ele se recorda de, quando garoto, comparecer a uma festa aberta promovida para a população local por alguns protestantes locais, com suas roupas de tweed elegantemente desmazeladas e seus sotaques aristocráticos. “Era como ficar perambulando pelo País das Maravilhas”, conta.

Na vida real, seria altamente improvável que alguém como St. John Strafford acabasse fazendo parte da polícia irlandesa. Assim, ele é uma espécie de fruto de uma fantasia, mas uma fantasia atraente, uma figura que, por seu próprio caráter de outsider, é capaz de notar coisas que passam despercebidas por outros.

Banville já terminou um segundo livro sobre ele, que deve ser lançado no final de 2021, e, ao final do livro, diz, “há indícios claros de que Strafford vai se envolver com o clã de Quirke”. Os fãs da série talvez esperem que isso significa que Strafford vá se apaixonar pela filha de Quirke, Phoebe. Os dois são solitários e podem fazer bem um ao outro.

Banville era conhecido no passado por seu ocasional mau humor e arrogância. Quando seu romance “O Mar” foi o vencedor inesperado do Man Booker, em 2005, ele ofendeu algumas pessoas quando disse que era “bom ver uma obra de arte” figurar em primeiro lugar.

Mas, numa sessão de Zoom no início de setembro –com um cálice de vinho tinto na mão e uma cama desarrumada ao fundo—, ele se mostrou sarcástico, autoirônico e até um pouco nostálgico. Disse que, enquanto espera a pandemia passar, está vivendo numa casa com vista para o porto em uma vila de pescadores ao norte de Dublin.

A vista é quase deslumbrante demais –quando está trabalhando, ele prefere olhar para a parede. “Mas há lugares piores onde eu poderia estar e situações piores também”, disse. “E, como escritor, por acaso não passei os últimos 60 anos em isolamento, de qualquer maneira?”

Normalmente o verão, que ele odeia, é quando ele escreve um livro de Black. “Assim posso dizer à família e aos amigos ‘sinto muito, não posso encontrar vocês, estou trabalhando’.” Mas este verão ele passou, em vez disso, trabalhando sobre o que pensa que talvez seja o último dos livros tradicionais de Banville, um que ele começou a escrever em 2017.

Numa grande façanha de autorreferência e somatória banvilliana –o tipo de coisa que enfurece seus críticos—, este livro traz de volta a figura de Freddie Montgomery, o narrador de seu romance de 1989 “O Livro das Evidências” (Montgomery também aparece em duas sequências, “Ghosts” e “Athena”), e o insere no mundo do livro de 2009 “The Infinities”, ambientado numa espécie de universo alternativo, um de muitos, em que a Inglaterra ainda é católica, a energia é tirada da água salgada e os deuses gregos são reais e vivem entre os humanos, se relacionando com eles.

Banville disse que está decidido a concluir o livro até o Natal e –citando a célebre frase de Oscar Wilde a respeito do papel de parede de um quarto de hotel em Paris onde estava hospedado—, acrescentou: “Um ou outro de nós terá que ir embora”.

Tradução de Clara Allain

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