“Se alguém pudesse nos olhar do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que andam apressadas, suadas e exaustas e também veria suas almas, atrasadas e perdidas no caminho por não conseguirem acompanhar seus donos. E isso cria uma grande confusão”, diz uma mulher velha e sábia ao protagonista de “A Alma Perdida”, conto da escritora polonesa Olga Tokarczuk, laureada com o Nobel de Literatura de 2018.
A voz dessa mulher lembra uma outra personagem emblemática da autora, a senhora Dusheiko, ótima narradora do romance “Sobre os Ossos dos Mortos”. Mas o protagonista desta vez é João, um homem que, andando depressa demais, acabou perdendo a alma no caminho. Quando esquece até o seu nome, passa por uma consulta com essa mulher, uma espécie de médica nada ortodoxa.
“A Alma Perdida” é um livro infantil, mas também uma ótima leitura para pessoas de todas as idades. No plano simbólico, ao menos para os adultos, a interpretação é tão direta e inequívoca que poderia empobrecer a experiência literária. Por isso, o maior desafio da obra talvez tenha sido o de desenrolar o enredo de maneira vivaz, fazendo uma boa costura entre a dimensão mítica e a dimensão concreta.
Mas, em poucas páginas, Tokarczuk e a ilustradora Joanna Concejo dão conta do recado e nos apresentam lindamente não apenas a ação —que é quase nenhuma, pois essa é mesmo a premissa do livro—, como também representam, esteticamente, o sentimento de descompasso entre mundo externo e mundo interno que marca tanto a vida de João quanto a nossa, leitores que habitam o mundo contemporâneo.
No dicionário, a palavra alma aparece acompanhada de algumas acepções diferentes, entre as quais princípio ou força vital, no ser humano ou nos animais; princípio imaterial da vida, do pensamento e da ação; substância incorpórea, imaterial, invisível; fonte e motor de todos os atos humanos; tudo que dá vigor, força, expressão; pessoa dotada de afetos e paixões; disposição para se comover; sentimento; condição básica, essência.
Lendo essas palavras uma a uma, sem atropelos, temos oportunidade de nos aproximar do tempo e do espaço delimitado pela fábula.
O livro recupera o sentido etimológico do termo —alma, do latim, animu ou anima, que significa o que anima, o que dá vida— em oposição aos processos de automatização, uniformização e segmentação próprios da atualidade. No conto, a explicação para o divórcio entre a pessoa e a sua alma é a de que “a velocidade com que as almas se movimentam é muito menor do que a dos corpos”.
Então, o conselho que João recebe da velha sábia —e segue à risca— é “escute, você precisa achar um lugar só para si, sentar-se e aguardar com paciência a sua alma". "Ela deve estar, neste momento, no lugar onde você passou há dois, três anos. Portanto, a espera pode demorar um pouco. Mas, para o seu caso, não vejo outro remédio.”
Com um pouco de humor e um pouco de melancolia, a fábula encontra um tom híbrido equilibrado.
A desaceleração que então passa a ocorrer no campo do enredo também se dá no campo da linguagem. O livro, que começa com páginas recheadas de texto, vai sendo tomado por ilustrações bucólicas detalhadas, entrecortadas por uma ou outra frase, como se o tempo estivesse se distendendo e, assim, nós também estivéssemos tomados pela lentidão, à espera da alma junto com o protagonista.
Mas, se ainda não podemos enterrar relógios e malas para ver nascer flores e abóboras, como faz João, talvez ao menos possamos observar as páginas desse livro sem pressa, com atenção e presença, contemplando as lindas imagens que vão contando, de forma poética, uma parte dos “muitos dias, semanas, meses” em que a alma do protagonista fez o caminho de volta e de como ele mesmo foi se preparando para a receber.
Com sorte, pelo brevíssimo intervalo em que estivermos lendo essa beleza que é “A Alma Perdida”, quem sabe também não reencontremos a nossa.
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