Ao se declarar dissidente das regras binárias e heteronormativas que regem de banheiros públicos a palácios de governo, o filósofo e professor Paul B. Preciado, um dos principais nomes dos estudos de gênero, cria neologismos para diagnosticar um planeta doente em “Um Apartamento em Urano: Crônicas da Travessia”.
O livro é composto por uma seleção de crônicas publicadas entre 2010 e 2018 no jornal francês Libération, entre outros veículos, e descreve de forma brutal sociedades disfuncionais pela carência de subjetividade e sobrecarregadas de conservadorismo e normatização.
O autor inverte a retórica reacionária de tratar pessoas que se identificam com letras da sigla LGBTQIA+ como doentes e faz diagnósticos duros à sociedade “capitalista tecnocientífica, tecnopatriarcal e heterocrata”.
Preciado começa os textos como Beatriz, uma mulher lésbica, e os termina como Paul, um homem trans, tornando indissociável, assim, sua transição de gênero das transições culturais, sociais e políticas do mundo.
O primeiro texto é sobre a possível independência da Catalunha, “um processo que, assim como a mudança de sexo, corre sempre o risco de cristalizar-se na construção de uma identidade normativa e excludente”.
Por sua auto-imposta condição nômade, o espanhol escreveu parte dos textos em hotéis e em aeroportos, dois bons exemplos de lugares em que violentos formulários só permitem ser um de dois: homem ou mulher.
Ora in loco, ora a distância, o autor registra a Primavera Árabe, a crise econômica grega, a ascensão de Trump, o neoliberalismo e a evolução de movimentos de extrema direita.
Por não caber num planeta dual, Preciado encontra em sonho a ideia de morar em um apartamento no planeta Urano. O onírico toma forma na realidade ao encontrar a teoria uranista, criada pelo ativista sexual europeu Karl Heinrich Ulrichs, no século 19, para definir “o terceiro sexo”, ou o que seria tardiamente chamado de homossexualidade.
E o uranismo, por sua vez, nasce da mitologia grega, quando Afrodite, a deusa do amor, ganha vida a partir dos genitais castrados de Urano —e esse parece ser o ponto-chave das rebeldes crônicas da travessia cujo autor não é exatamente homem, mulher ou trans.
Mais do que atacar por atacar a visão retrógrada e simplista do azul e rosa, coisa de menino e coisa de menina, Preciado diagnostica que o corpo e o sexo ocupam hoje o lugar que as máquinas tinham na Revolução Industrial.
Os corpos humanos vivos, predestinados à força de trabalho ou à força de reprodução, são o retrato de um planeta pouco subjetivo e forçadamente binário que adoeceu.
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