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Rapto de criança em 'Suíte Tóquio' é o pesadelo de toda mãe

Livro de Giovana Madalosso evidencia a desigualdade entre patroa e babá e critica heranças escravocratas

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"Estou raptando uma criança. Tento afastar esse pensamento, mas ele persiste enquanto descemos pelo elevador, cumprimentamos o Chico, saímos pelo portão."

Assim começa o livro "Suíte Tóquio", da curitibana Giovana Madalosso, publicado pela editora Todavia, que vai contar o desenlace do rapto dessa criança, Cora, por sua babá, Maju.

Os pais da menina, Fernanda e Cacá, demoram a perceber que a filha sumiu. A mãe está ocupada com o trabalho e com a possibilidade de viver um romance com uma mulher, e o pai, menos ambicioso, está acostumado a delegar as demandas da filha sem questionar.

A escritora Giovana Madalosso
A escritora Giovana Madalosso - Renato Parada/Divulgação

Maju e Cora saem do apartamento onde moram e passam pelo "exército branco", como Fernanda apelidou o grupo de babás, todas vestidas de branco, que se encontram pelas manhãs na praça do bairro de Higienópolis com as crianças de que tomam conta. Mas as duas, neste dia, têm outro destino, bem diferente da rotina que seguem.

A trama de "Suíte Tóquio" é um pesadelo recorrente para qualquer mãe, mas a maneira como esse enredo se desenrola é o grande trunfo do livro, que aborda com ternura, drama e agilidade as convenções sociais, as questões afetivas e as tensões de classe na voz de duas personagens, que falam ambas em primeira pessoa.

Maju é uma delas, Fernanda, a outra. Elas tem personalidades diferentes e muito bem definidas. Cada uma tem seu vocabulário, seu jeito de ver o mundo, suas dúvidas, seus medos, suas preocupações, seu senso de humor.

Depois de começar a ler, é possível abrir o livro em qualquer página aleatória e saber imediatamente quem está narrando aquele trecho, de tão distinguível que é. "Não que nosso casamento fosse ruim. Mas era um casamento, com a força sepultatória sutil da maioria dos casamentos. E com uma ausência de conflito tão grande que não importava o que acontecesse sob a superfície, tudo sempre parecia bem."

Fernanda fala e pensa como a mulher rica que é, que acabou de aceitar um cargo altíssimo numa emissora de televisão e desenvolve temas complexos em seus projetos. Está passando por um momento pessoal atribulado, com uma nova paixão por uma colega de trabalho que desperta seu lado romântico e erótico que andava anestesiado pelo casamento morno.

Maju, por outro lado, é uma mulher simples, inocente, humilde, que fala de maneira despachada e apela a Deus nos momentos de maior tensão. Trabalha há 30 anos como babá. Terminou recentemente um relacionamento com um homem que encontrava só de 15 em 15 dias, quando tinha folga.

Foi a combinação que ela fez com a patroa, em troca de um aumento de salário e uma reforma no quartinho, então batizado pela chefe de suíte Tóquio, o título do livro.

Mas ela não é uma pessoa simplória e tem também suas inquietações. "E, como foi que Deus me colocou nesse caminho, não vou me sentir mal, vou atender os seus desígnios. Digo pra Cora que vamos fazer uma maluquice, uma brincadeira muito legal, mudar o nome dela. Pergunto como ela quer se chamar daqui pra frente. Moana, diz. Falo que esse não vale, é muito de princesa, muito de cinema, que tal algum mais normal, tipo Manuela, Carolina ou Brígida, como a vó da Maju."

O motivo que a leva a raptar a menina só se revela no final, e até lá a trajetória de Maju e Cora transforma metade do livro num romance pé na estrada. A outra parte, que conta o curso de Fernanda, seu marido Cacá e depois sua mãe, sua irmã e até Yara, a amante, é uma busca desenfreada.

No roteiro das duas partes há questões em comum. Ambas as narradoras estão em busca de coisas que fazem falta a elas, traduzidas em ternura e família para uma, e romance, sexo e redenção para a outra.

Raça e cor deliberadamente não são explicitadas pela autora, mas a estrutura de capítulos alternados evidencia a desigualdade entre as duas e faz críticas profundas às heranças escravocratas que seguem vivas em pleno século 21.

Fernanda e Maju são como um retrato do lado oposto uma da outra, e o que acontece entre elas revela os dramas justificáveis em cada classe social e as particularidades de um regime injusto que faz parte da realidade de muitas famílias brasileiras.

Mas também há espaço para o humor na narrativa de Giovana Madalosso, ainda que a história contada seja aterrorizante. A autora apresenta cada uma de suas protagonistas como personagens profundamente humanas, com muitas contradições, e a leitora se reconhece nas ações de ambas até certo ponto.

Muito bem escrito, o romance se desenvolve em ritmo acelerado costurado por comentários ácidos a respeito da triste realidade em que vivemos.

Suíte Tóquio

  • Preço R$ 59,90 (208 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Giovana Madalosso
  • Editora Todavia
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