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Zuza Homem de Mello deixa MPB sem um de seus principais cronistas

Além de bom humor e texto encantador, a característica mais poderosa dos livros do autor é o didatismo impecável

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O imenso conhecimento de Zuza Homem de Mello sobre música era comparável a sua simpatia e sua infindável paciência para discutir os rumos da MPB. Quando alguém dizia a ele que fulana era “a nova Elis Regina” ou que beltrano poderia ser um “novo Milton Nascimento”, ele sorria. Não contrariava o interlocutor, preferia contar histórias que apontavam Elis e Milton como geniais. E insubstituíveis.

Histórias da MPB são entrelaçadas com a vida do jornalista e musicólogo José Eduardo Homem de Mello, paulistano nascido em 20 de setembro de 1933. Desde o final da década de 1950, ele testemunhou e protagonizou uma viagem musical encerrada neste 4 de outubro. Aos 87 anos, Zuza morreu de infarto enquanto dormia, em seu apartamento no bairro de Pinheiros.

Foi fundamental para a formação do mais influente pesquisador musical brasileiro a decisão de ir para os Estados Unidos em 1957. Depois de começar a escrever sobre jazz nos jornais Folha da Noite e Folha da Manhã, o jovem contrabaixista foi estudar música na renomada Juilliard School, em Nova York. Retornou ao Brasil em 1959, trazendo na bagagem uma apreciação técnica refinada do melhor jazz, além de uma devoção enorme a Duke Ellington.

Ele trabalharia durante uma década na TV Record, inicialmente contratado como técnico de som. Justamente no período em que a música e a televisão tiveram no Brasil seu maior e mais intenso congraçamento. Zuza participou de programas seminais para a MPB, como “O Fino da Bossa” e “Jovem Guarda”, e dos empolgantes festivais da emissora, que lançaram ao público Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes, Edu Lobo e tantos outros.

Por duas vezes, pelo menos, Zuza esteve nos melhores lugares do planeta para se aproximar de momentos únicos da história da música. Nos anos 1950, teve chance de assistir e conhecer pessoalmente em Nova York gigantes como Ellington, Miles Davis, John Coltrane e Thelonious Monk, numa efervescência jazzística ímpar.

Na década seguinte, viu de perto a exportação da bossa nova para o mundo e ajudou a popularizar uma geração que iria unir como nunca antes qualidade e popularidade na música brasileira, com artistas que até hoje contribuem para a melhor produção do país.

Depois dos festivais da Record, que magnetizavam fãs pelo Brasil inteiro, poucos organizadores de eventos semelhantes deixaram de recorrer a Zuza. O currículo de colaborações é praticamente um mapa de boa música: O Fino da Música, Festival de Verão do Guarujá, Festival de Jazz de São Paulo, Free Jazz Festival, Tim Festival, além da direção de inúmeras turnês históricas de Elis, Milton, Gil e outros medalhões.

Enquanto ajudava a lançar novos valores, como Chico César, Lenine e Zélia Duncan, ou a consolidar carreiras de prestígio, Zuza não parou de transmitir seu conhecimento e sua sensibilidade musical. Conhecido por promover audições diárias em sua casa, muitas vezes para amigos célebres como Gil ou Caetano, ou apenas para sua família, ele foi um professor obstinado nas últimas seis décadas.

Seus meios para propagar música de qualidade e, principalmente, educar os outros no discernimento dessa qualidade, foram o trabalho como jornalista e crítico musical, os programas de rádio e de TV que criou e apresentou, e seus livros.

A biblioteca completa dos volumes escritos por Zuza praticamente não deixa de fora nada relevante na MPB. Além de bom humor e um texto encantador, a característica mais poderosa dos livros do autor é o didatismo impecável. Uma geração inteira de críticos e apreciadores deve sua formação aos fascículos da grandiosa coleção “História da Música Popular Brasileira”, que ele criou em parceria com Tárik de Souza no início dos anos 1980, lançada em bancas pela editora Abril.

Zuza Homem de Mello, em 2017, durante o lançamento do livro 'Copacabana' (ed. 34), sobre o samba-canção
Zuza Homem de Mello, em 2017, durante o lançamento do livro 'Copacabana' (ed. 34), sobre o samba-canção - Danilo Verpa/Folhapress

Zuza publicou seu primeiro livro em 1976, “Música Popular Brasileira Cantada e Contada”. Em 1997, lançou em dois volumes “A Canção no Tempo”, uma obra de fôlego. Ao lado do cearense Jairo Severiano, outro nome gigante como historiador musical, o livro oferece uma análise das músicas que fizeram sucesso no Brasil entre 1901 e 1985.

Em 2001, escreveu o volume sobre João Gilberto na Coleção Folha Explica, editada pelo Publifolha. Sua admiração pelo cantor baiano que lançou a bossa nova ao mundo era tanta que Zuza decidiu escrever mais um livro sobre ele. No mês passado, Zuza deu ponto final na nova versão da vida de João Gilberto, agora à espera de publicação póstuma.

Entre 2003 e 2014, Zuza publicou livros em que suas memórias pessoais se misturam a acontecimentos cruciais da MPB. A maior repercussão foi com “A Era dos Festivais”, de 2003, obra fundamental para entender a ascensão da geração de Chico, Caetano e Gil.

“Música nas Veias: Memórias e Ensaios”, de 2007, “Eis Aqui os Bossa Nova”, de 2008, e “Música com Z”, de 2014, trazem mais doses do encantamento literário que Zuza provoca em sua condição de testemunha ocular da vida musical brasileira. Em 2017, retornou a um trabalho extenso e de pesquisa detalhada em “Copacabana: A Trajetória do Samba-Canção”.

Produzido pelo Canal Curta! e dirigido por Janaina Dalri, “Zuza Homem de Jazz” foi lançado no ano passado. Concebido por Zuza e sua mulher, Ercília Lobo, o documentário usa a trajetória pessoal do musicólogo para conduzir uma discussão sobre a influência do jazz na música brasileira.

Saindo de cena numa fase ainda muito produtiva, Zuza Homem de Mello deixa a MPB sem um de seus principais cronistas. Gerações de alunos vão sentir sua falta.

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