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'A Amazônia está com febre', diz o escritor Ailton Krenak

Autor participou de live da Folha para debater filme de Maya-Da Rin, sobre indígena que vive em Manaus

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São Paulo

O novo filme de Maya-Da Rin acompanha a vida de Justino, um indígena que trabalha como vigia no Porto de Manaus e é acometido por uma súbita febre.

O sintoma não é causado por doença, mas uma metáfora para ​o sentimento que persegue o protagonista, um homem que se sente dividido entre a cidade e sua aldeia mesmo depois de 20 anos vivendo na capital. Não à toa a obra se chama "A Febre".

A análise foi feita durante o debate que a Folha realizou nesta quinta-feira (18), mediada pelo jornalista Leão Serva, para discutir o filme ganhador do prêmio Candango no Festival de Brasília em 2019. A obra está em cartaz nos cinemas e disponível nas plataformas digitais.

“Eu sou uma indígena desaldeiada, moro em Cuiabá com minha família. Essa sensação de febre que ele sente, será que sentimos todos os dias?”, questiona Naine Terena, curadora da exposição

"A Febre", gravado inteiramente no Amazonas, é quase todo falado na língua indígena tukano e traz o ator estreante Regis Myrupu, que foi premiado como melhor ator no festival de Locarno, na Suíça.

“Uma boa parte do mistério e fascínio do filme é a presença de atores indígenas falando em tukano”, afirma o sociólogo Laymert Garcia dos Santos. Ele também chama a atenção para a profissão de Justino, cuja função é vigiar a mercadoria que desembarca diariamente no porto de Manaus.

“[A mercadoria] é justamente a coisa mais importante do mundo ocidental e, mesmo rodeado por elas, o personagem não deixa de ser índio em nenhum minuto”, diz.

Justino pouco pertence ao mundo dos brancos. Ele não gosta de tomar remédio e não é muito fã do que ele chama de "comida de supermercado".

Na visão do escritor indígena Ailton Krenak, que também participou do debate, as cenas longas e sem diálogos do deslocamento entre a casa e o trabalho cumprem bem o papel de mostrar o peso que o personagem carrega por viver numa cidade onde não se encaixa —quase tão grande quanto aqueles containers que ele vigia.

“Ele dormindo, sonolento, pegando aquela febre. O filme vai mostrando a coisificação da vida quando você cai naquele sorvedouro de Manaus.”

Hoje, conta Krenak, 40% da população indígena vive em situação urbana e ele próprio diz ter muitos amigos que foram para a cidade para que seus filhos pudessem estudar e nunca mais voltaram. “Será que a vida é isso? Vamos abandonar território por um emprego na cidade?”, questiona.

Em uma cena do filme, o novo vigia do porto conta que tinha o hábito de dormir com uma arma ao lado da cama, na fazenda onde trabalhava, para se proteger dos índios que moravam pela região. “Mas índio de verdade”, o colega diz a Justino, como se ele não fosse.

“O capataz está o tempo todo ofendendo o índio e tomando o lugar dele, inclusive”, diz Laymert. Essa tentativa de deslegitimizar a identidade de Justino é o retrato de uma situação que extrapola as telas, explica Naine Tereno.

Para Krenak a história do filme é a mesma que ele e o seu povo vivem. “Quando chego no Jaraguá [terra indígena localizada na zona noroeste de São Paulo], estou imerso naquele mundo de fraturas.”

Durante a pandemia, ele conta que recebeu uma recebeu uma mensagem do líder indígena Álvaro Tukano que dizia: “Velho Krenak, a terra está podre”.

“Eu fui pensando [na mensagem] e é claro que está. O [vice-presidente] Mourão e o Salles [ministro do Meio Ambiente] estavam passeando pela Amazônia, tudo isso apodrece aquela região do planeta”.

E assim como Justino, Krenak avalia: “A Amazônia está com febre”

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