Descrição de chapéu

Álbum póstumo mostra o lado B do compositor italiano Ennio Morricone

Com vocação para música de fundo, 'Morricone Segreto' ajuda a matar as saudades das canções lisérgicas dos anos 1970

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São Paulo

Morricone Segreto

Não espere ouvir aqui a enésima versão dos temas de “Cinema Paradiso”, “Era Uma Vez na América” ou “A Missão”. Você tampouco encontrará os “western spaghetti”, ou as contribuições para os filmes de diretores célebres como Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini, Oliver Stone ou Roman Polanski. “Morricone Segreto” entrega exatamente o que o título promete – um lado secreto da produção do compositor italiano de trilhas sonoras.

Morto em julho, aos 91 anos, Ennio Morricone agora batiza um icônico complexo cultural de sua Roma natal, o Auditorium Parco della Musica, projetado por ninguém menos que Renzo Piano, e inaugurado em 2002 —o que serve para aquilatar de forma eloquente o status de que disfruta esse prolífico autor de cerca de 400 trilhas sonoras para filmes –sim, ele também deixou mais de uma centena de partituras de música “absoluta”, para concerto, mas sua reputação se deve essencialmente à produção para cinema.

Morricone girava o planeta regendo concertos com suas trilhas mais célebres, porém sua reputação é tão sólida que a indústria fonográfica pode se dar ao luxo de lançar um álbum como este, de música pouco conhecida, para películas obscuras. O disco não cumpre assim, aquela função tradicional, de fazer o espectador reviver na imaginação cenas de um filme pelo qual tem carinho, ou de voltar a desfrutar, em casa, de uma melodia que capturou seu coração em tela grande.

As 27 faixas –sendo sete inéditas–, de curta duração, pertencem a trilhas de filmes feitos entre o final da década de 1960 e o começo da de 1980 —eventualmente, com atores conhecidos, como “La Faille”, ou a culpa, thriller de 1975 de Peter Fleischmann estrelando Michel Piccoli e Ugo Tognazzi, ou ainda “Le Clan des Siciliens”, ou o clã dos sicilianos, película de máfia de Henri Verneuil, de 1969, com Alain Delon e Jean Gabin.

Tal escolha, contudo, não implica em risco do ponto de vista comercial. O Morricone “lado B” que a coletânea nos propõe não é o experimentador que tocava trompete em improvisações de vanguarda, e sim o ouvido atento às tendências hegemônicas da música popular de seu tempo. Música melódica, dançante, “acessível”.

Em vez de orquestras sinfônicas, o que ouvimos aqui são formações com uma sonoridade indelevelmente marcada pelo jazz mas, sobretudo, pelo pop dos anos 1970. As levadas de bateria, as linhas de baixo e, sobretudo, os timbres dos onipresentes sintetizadores fazem de “Morricone Segreto” um mergulho nas ondas do rádio de meio século atrás.

Para não ir muito longe, um carimbo de época, a palavra “psicodélico”, aparece em duas faixas, que parecem reverberar o clima de “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, de 1967, dos Beatles –“Psychelic Mood” e “Jukebox Psychédélique”. Esta última, com uma série de evocações de música indiana.

Todo esse coquetel é elaborado por um barman imaginativo, com características que aprendemos a identificar em suas trilhas mais célebres, como o talento para criar melodias que grudam, o gosto pelo uso dos cantores em vocalises, monossílabos ou só uma palavra –como na faixa de abertura “Vie-Ni”–, ou combinações originais e inusitadas de instrumentos —como em “René la Canne”, para o filme de mesmo nome de 1977, com Gérard Depardieu e Sylvia Kristel.

A faixa mais breve do disco, e seu maior momento de ousadia, “Edda Bocca Chiusa”, de só 13 segundos, é exatamente o que o título diz –Edda dell'Orso, talvez a voz feminina mais associada às trilhas de Morricone, vocalizando com a boca fechada.

Em seu todo, a sucessão das faixas parece meticulosamente pensada como uma playlist para a escuta dispersa em aparelhos móveis. Nascido com vocação irresistível para música de fundo, “Morricone Segreto” pode funcionar ainda como poderoso catalisador para quem estiver com saudades de costeletas, calças boca de sino e experiências lisérgicas.

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