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Cachorra vira símbolo de uma mãe agressiva em romance de Pilar Quintana

Um dos destaques da Flip, autora colombiana escreveu o livro enquanto ainda amamentava o primeiro filho

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São Paulo

A escritora Pilar Quintana nunca quis ter filhos. E sabia disso desde os 15 anos.

Quando chegou aos 39, no entanto, seu divórcio fez surgir dentro dela uma mistura de nostalgia pelas crianças que nunca havia tido e a sensação de que estava, em suas palavras, “velha e acabada”, como se não desse mais para refazer sua vida.

O que estava era equivocada —três anos depois, com um novo parceiro, ficou grávida de forma rápida e natural. E, enquanto amamentava, escreveu "A Cachorra".

O livro que rendeu à escritora colombiana fama internacional —e um convite para participar com destaque da próxima Flip, que acontece online em dezembro— guarda em seu centro uma protagonista com trajetória quase oposta à de Quintana.

Damaris passa décadas desejando engravidar, sem sucesso, mesmo com tentativas ininterruptas e sob a pressão sufocante de amigas que abriam mais e mais espaço para bebês em suas rotinas.

Já na casa dos 40, com um ar de desistência, ela decide adotar uma cachorra. E dá a ela, não sem um pouco de vergonha, o nome com que sempre quis batizar a filha.

“Damaris tem muitas carências, sofre abusos físicos, é abandonada e perseguida pela culpa”, diz a autora. “Ao chegar à maturidade, se sente frustrada e cheia de inveja. A cachorra que ela adota para preencher seus vazios serve como detonadora para que o monstro que até ali ela havia mantido sepultado se desate.”

Como se vê, a relação que a mulher estabelece com a cadela não é o de uma simples mãe de pet. Ao longo do romance, o carinho ardente que Damaris dedica à pequena Chirli desemboca em outros tipos de emoções extremas.

Quando a cachorra some na mata por dias, a preocupação que envolve Damaris extrapola o normal —e reacende memórias traumáticas de outras perdas de sua juventude. Quando ela se sente rejeitada pelo animal, desenvolve um rancor digno das mais profundas traições.

Quintana assente quando é questionada sobre a existência de uma relação intrínseca entre o afeto e a violência dentro de todo mundo.

“Tendemos a pensar que os maus são os outros. Em todas as pessoas, por mais bem-intencionadas que sejamos, habita também a maldade. O que faz com que o monstro que vive dentro de nós um dia desperte e cometa atrocidades? Creio que essa é outra das perguntas que ponho no livro.”

“A Cachorra” é um comentário sobre como essa agressividade instintiva também faz parte da maternidade, o que põe a obra na mesma estante de uma literatura recente que busca tornar mais complexo —e menos idealizado— o retrato que se faz das mães.

A italiana Elena Ferrante, a canadense Sheila Heti e a nigeriana Buchi Emecheta são só alguns exemplos de autoras que põem no centro de suas obras mulheres que recusam a obrigatoriedade de que toda mulher deva ser mãe e que têm uma relação conflituosa, insegura, até mesmo hostil com a maternidade.

São obras que não procuram pintar como terrível a ideia de ser mãe, mas trazer as expectativas e as obrigações relacionadas a esse papel para mais perto do mundo real.

“Minha sensação é que nossas mães e avós não nos contaram a história completa. Falavam da maternidade como se fosse uma coisa idílica e maravilhosa, um estado de realização e pureza no qual não cabiam as emoções negativas ou feias”, afirma Quintana. “A publicidade alimenta essa ideia com comerciais de papinhas e fraldas que mostram mães sempre lindas e felizes.”

É claro que não é indiferente o fato de a filha de Damaris ser uma cachorra. Mas ali opera todo o misto de emoções que conturba a relação entre pais e filhos —desde uma exigência de fidelidade absoluta até a repreensão teimosa de qualquer movimento fora da linha.

Passa também por um ciúme muito peculiar, quando a cachorra alcança o que a mulher nunca conseguiu e engravida.

Damaris “quase não saía do casebre” depois de saber dessa notícia. “A chuva se derramava sobre o mundo e a selva, ameaçadora, rodeava-a sem lhe fazer companhia, igual ao marido, que dormia em outro quarto e não perguntava o que estava acontecendo; a mãe, que tinha ido embora para Buenaventura e depois morrera; ou a cachorra, a quem tinha criado, mas então a abandonara", descreve o livro.

Essa sensação de isolamento é reforçada pela ambientação numa vila quase desabitada do litoral da Colômbia. A escritora, nascida em Cali e formada na capital Bogotá, passou nove anos numa região rural como a que inspirou a obra, onde as mulheres têm condições precárias de estudo e subsistência.

“Uma mulher mestiça como eu, de classe média e da cidade, se deseja ter um filho e não fica grávida por meios naturais pode ir ao médico para saber qual é o problema, fazer um tratamento de fertilidade ou adotar um filho”, diz Quintana. “Uma mulher como Damaris, nascida negra e pobre no Pacífico colombiano, não tem essa opção. Não tem quase nenhuma opção. Ela está sozinha contra os elementos.”

A selva tem uma atuação intensa sobre “A Cachorra”, compondo uma figura voluntariosa e insondável capaz de decidir destinos. E que harmoniza bem com a exploração que o livro faz, nas palavras da autora, de um “lado escuro e oculto” das relações maternas.

“Na Colômbia, e creio que na América Latina como um todo, há uma ideia de mãe como um ser perfeito. Mas as mães, antes de serem mães, são seres humanos. Seres complexos dentro dos quais se aninham todas as emoções. Incluindo aquelas que se contrapõem ao amor.”

A Cachorra

  • Quando Lançamento na terça (10)
  • Preço R$ 34,90 (160 págs.); R$ 22,90 (ebook)
  • Autoria Pilar Quintana
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Livia Deorsola
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