Descrição de chapéu The New York Times

David Letterman sente falta dos dias nonsense quando público queria beijá-lo

Apresentador estreia nova temporada de série de entrevistas na Netflix, gravada em meio à pandemia

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Dave Itzkoff
The New York Times

Poucos dias depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, David Letterman estava sentado à sua mesa no cenário do “Late Show”, da rede televisiva CBS, e contou uma história sobre um evento em Choteau, no estado americano de Montana, organizado para arrecadar dinheiro para Nova York. Com a voz embargada, ele disse aos espectadores, “se isso não lhes diz tudo que é preciso saber sobre o espírito dos Estados Unidos, não há o que eu possa fazer para os ajudar”.

Depois de 19 anos, com o país em meio a uma pandemia que já dura meses, Letterman, aos 73, enfrenta dificuldades para encontrar histórias igualmente inspiradoras. Certa manhã da semana passada, o veterano apresentador de talk shows e humorista estava acomodado em um parque em Tarrytown, uma cidadezinha próxima de Nova York, contemplando o rio Hudson e brincando sobre a ponte Governador Mario Cuomo.

Homem branco sorri
Apresentador americano David Letterman em Nova York, nos Estados Unidos, em 15 de maio de 2019 - Kena Betancur / AFP

"Parece inacabada”, disse ele usando uma máscara que mal continha sua barba desgrenhada. “Não parece que eles deram o projeto para o moleque novo no escritório?”

Mas a verdade é que o estado de espírito de Letterman era mais melancólico que brincalhão. Embora sua mulher, Regina, e o filho, Harry, tenham escapado do novo coronavírus, ele conhece diversas pessoas que contraíram a Covid-19, algumas das quais morreram da doença. E se sente profundamente frustrado pelo que encara como incoerência nos esforços nacionais para manter as pessoas informadas sobre a pandemia e mitigar sua difusão.

A pandemia também quase transformou em vítima, se bem que de modo bem menos devastador, o programa de entrevistas de Letterman na Netflix, “O Próximo Convidado Dispensa Apresentações com David Letterman”, cuja nova temporada estreou em outubro. Ele tinha gravado dois episódios, com Kim Kardashian West e Robert Downey Jr., antes da pandemia, e acreditava que a temporada –e quem sabe até a série— fosse terminar ali mesmo.

Mas conseguiu produzir mais dois episódios no trimestre passado, sob circunstâncias substancialmente diferentes –um com David Chappelle, gravado num pavilhão a céu aberto em Yellow Springs, no estado de Ohio, e um com Lizzo, no estúdio caseiro dela em Los Angeles, sem a presença de espectadores na gravação.

Segundo Letterman, cada um desses episódios representou uma nova lição sobre a evolução do entretenimento e propiciou insights mais profundos como entrevistador e como observador da natureza humana. Mesmo assim, ele percebeu que sentia falta do que designa como “os dias descuidados do nonsense”, quando podia “levar pessoas a um teatro e conversar com elas por uma hora e ao fim do processo apertar as mãos dos espectadores", com todo mundo querendo o beijar "de língua”. “Não fazemos mais isso”, ele acrescentou.

Letterman falou mais extensamente sobre suas experiências na pandemia, a produção de sua série para a Netflix e que esperanças ele tem quanto ao futuro.

*

Como foi a pandemia, para você? E como está sendo agora? Como todo mundo, você acaba esquecendo dela. Passados seis, oito meses, você continua falando como se as coisas estivessem normais, e de repente, opa, isso nós não podemos fazer por causa da pandemia. No começo, foi mais que bruto. O marido de uma mulher que trabalhou no “Late Show” morreu. Um professor na escola de Harry também. Paul Shaffer e a mulher foram infectados. Cathy, a mulher dele, foi internada. Barbara Gaines, que foi produtora do programa, contraiu a Covid-19; a mulher dela também. E assim por diante.

Como você se sente ao entrar em contato com pessoas de outras partes do país que não parecem estar levando a pandemia tão a sério? Isso me deixa muito triste. Porque aprendemos uma lição que essas outras pessoas estão desconsiderando. Eu conversei com um amigo que estava furioso por o prefeito da sua cidade ter mantido as empresas fechadas. Ele disse “aquele cara nunca será reeleito”. E eu fiquei pensando comigo mesmo se lhe dizia ou não o que achava disso. Vamos chegar a um quarto de milhão de mortes, já, já. Mas eu preferi não entrar numa briga.

Depois dos atentados de 11 de Setembro, você fez diversos monólogos no 'Late Show' para tentar reanimar os espectadores e promover a união entre eles. Você sente vontade de dizer algo parecido agora? Algo aplicável ao momento atual. Eu bem gostaria de ter alguma coisa significativa a dizer. No entanto, com todas essas pessoas resistindo à ideia de prevenção, fico pensando 'mas e as famílias das 220 mil pessoas que morreram?'. Fico imaginando como elas se sentem. Não entendo. Nem tenho outra solução a não ser fazer o recomendado –tomar conta de você mesmo e de sua família.

Como a pandemia afetou seu trabalho na série da Netflix? Pensei que aquilo era o fim. De verdade. No começo, parecia mesmo que, meu Deus, eles estavam escalando os muros e íamos todos morrer. As pessoas gostam de me lembrar que sou bem vulnerável na minha idade, o que não aprecio de maneira alguma. “Papai, você sabe que tem quase cem anos, melhor não sair."

Como você decidiu continuar a temporada? Tínhamos mais dois episódios [com Lizzo e David Chappelle] em pré-produção e estávamos ansiosos por fazer alguma coisa. Nós os gravamos num período muito curto e aí voltamos para casa. Àquela altura já havia protocolos em vigor, na companhia produtora e na Netflix, que tivemos de respeitar —e fizemos isso alegremente. Passamos muito bem por tudo isso.

Kim Kardashian West, que agora é uma convidada preferencial em sua série na Netflix, era alvo frequente de zombaria nos seus dias à frente do 'Late Show'. Ah, e eu puxava aquela fila. Lembro que quando ela foi convidada ao programa eu disse que não sabia coisa alguma sobre ela ou seu programa. E, quando fomos conversar com Kanye, percebi que a havia julgado de maneira errada.

O que o fez mudar de ideia a respeito dela? Depois de conversarmos com Kanye West [na temporada passada da série na Netflix], tive um papo longo com ela em sua casa e comecei a pensar que a havia usado como assunto de piada e a encarado como alguém que não devia ser tratada seriamente.

Descobri que aquela impressão não era o fim da história. Ela tinha família. Tinha um programa para a reforma das penitenciárias. Não vou comentar sobre como é fácil ser casada com Kanye West. E, se ela consegue manter uma série como a dela no ar por todos esses anos, é uma realização. Qualquer pessoa que consiga permanecer na televisão por tanto tempo merece os "parabéns".

Você foi a Yellow Springs, em Ohio, para entrevistar David Chappelle. Você se apresentou no festival de comédia que ele organizou lá? Sim, acho que sim. [Perguntando ao assessor de imprensa]: Participei? [O assessor responde: “Sim”.] Então, me disseram que participei. [Risos.]

Foi excelente. É um lugar único, ao ar livre. Todo mundo passou por exames e respeitou o distanciamento social. Eu vi três ou quatro humoristas, e meu coração pesou mais e mais a cada apresentação deles. Porque, na minha época de stand-up, boa parte das apresentações era [com uma voz fraquinha], “ei, de onde você é”? Mas aqueles rapazes e moças, uau —o nível da coisa, o intelecto da coisa, a forma de apresentação.

Tudo melhorou muito, ante a época em que eu e meus amigos subíamos ao palco para dizer “ei, como vocês estão?". "Acabei de chegar de Gary, Indiana.” Mesmo? Ninguém quer saber. Saia logo daí.

Você desenvolveu um set novo de stand-up ou usou material antigo? Material antigo. [Risos.] Sim, eu guardo material antigo num baú do tesouro. Porque é tão valioso que não quero que alguém se machuque com ele por acidente.

Não, foi tudo de momento. Bastava eu pedir licença para amarrar o sapato [imita a audiência rindo]. Porque, quando Dave dá seu carimbo de aprovação a alguma coisa, não é tão difícil quanto você possa imaginar que seria. Primeiro pensei que, meu Deus, isso não vai funcionar. E, quando acabou, pensei comigo mesmo que não faria nada mais de tão divertido por todo o verão.

Você já tinha entrevistado Lizzo no 'Late Show', em 2014, antes de a carreira dela decolar. É por isso que voltou a ela agora? [Em tom profundamente sarcástico]. Cronologicamente, você pode argumentar que eu sou o motivo para o sucesso dela. E acredito que nós —nós nada, eu mesmo, os outros que se danem— a pus no mapa. É algo que afirmo.

Mulher negra e gorda canta usando roupas lilás
Apresentação exclusiva de Lizzo no Brasil faz parte do YouTube Music Night, em parceria com a Warner Music Brasil, em maio de 2020 - Divulgação

Por causa da pandemia, o episódio não tem plateia. São só vocês dois conversando no estúdio de gravação da casa dela. Isso o levou a considerar uma nova abordagem para a série no futuro? A sensação é de um relaxamento muito maior, e acho que isso vem dela. Ela foi muito adorável, graciosa e cortês, e o que realmente me impressionou foi o talento dela na flauta. Fui sempre eu quem acreditou que era preciso ter uma audiência, porque foi assim que criamos o programa —o timing é determinado pela audiência.

Mas, no futuro, o requisito de ter uma plateia não será mais essencial. Eu gostaria de testar se funciona com outros convidados além da Lizzo.

Você já teve momentos nessas entrevistas em que sente não ter um quadro de referências compartilhado, com alguns entrevistados? Sim. Porque as experiências não são paralelas, em termos práticos. Estamos todos no showbusiness, mas essa é a comparação mais próxima que se pode fazer, culturalmente. Eu já me questionei sobre se aquilo pareceria estúpido. Um velho lá tentando conversar com pessoas vivas, que estão prosperando e dominando o mundo via rede social. Eu encarava a mim mesmo como um destroço. Mas esse é um diálogo interior.

Como superar essa sensação? Como no caso de qualquer pessoa com quem você fale, cada ser humano, existem situações que ajudaram a pessoa a se tornar aquilo que ela é. E assim é possível obter uma história de qualquer pessoa. Pode não acontecer em cinco minutos, mas em cada uma daquelas experiências existe sempre um conduto para o compartilhamento.

“Ah, é? Você acha que isso é grande coisa? Bom, uma vez eu engasguei com um sanduíche de pasta de amendoim e quase morri." Você precisa fazer de cada convidado uma boa entrevista.

Você acha que os talk shows noturnos, um gênero que você ajudou a desenvolver, perderam espaço nos últimos anos que eles se tornaram políticos demais e que esse tipo de humor não fala bem ao público e tirou o espaço de tudo? Sei que algumas pessoas tiveram imenso sucesso com isso. Stephen [Colbert] fez um excelente trabalho com meu velho programa —que agora é o programa dele. Na minha época, o objetivo era fazer qualquer coisa que levasse a plateia a rir. Isso talvez ainda seja parte da dinâmica, agora.

As pessoas têm fome de ver o atual governo ser atacado e posto em situações embaraçosas. E acho que os talk shows trabalham nesse sentido. Não os culpo. Depois de algum tempo, cansa um pouco, mas o apetite por esse tipo de coisa não desapareceu. Acho que eles ainda fazem negócios suficientes para manter as pessoas contentes.

Você já se viu num momento de medo quanto ao futuro do país? Sim, diversas vezes, até recentemente. Mas agora estou confiante —ou mais confiante do que nos últimos quatro anos— de que em duas semanas trocaremos de presidente. E será uma imensa vitória não só para a nossa cultura e governo, mas o simples ato de votar terá sido a razão para que o restante do país se recomponha e seja salvo daquilo que, de muitos modos, parecer ser uma tirania, ou certamente a ameaça de uma. Creio que será uma imensa vitória, em muitas frentes, uma das mais importantes das quais é que a ocasião chamará a atenção para a preciosa liberdade de poder votar.

Por favor, não encare isso como sugestão, mas você já pensou em largar a televisão de vez? Para começar, você não vai ferir meus sentimentos, porque estou morto por dentro. Mas o pessoal da Netflix me recolocou no negócio de uma maneira que, para mim, foi muito divertida. Por outro lado, estou ciente do meu prazo de validade. E estou vencido há muito tempo.

Quando acontecer, vou curtir coisas pequenas aqui e ali, isso bastará. Mas com certeza existe gente mais capaz. Admito isso sem problemas. Se é o caso de falar de um prazo, seria quando meu filho terminar o segundo grau. Mas se acontecer amanhã, ótimo.

Seu filho, Harry, tem 16 anos, agora. Você está preocupado com os efeitos da pandemia sobre a vida dele? Acho que isso preocupa todos os pais, não importa que idade tenham seus filhos. Mas, para Harry e seus amigos, o primeiro ano do ensino médio é uma experiência crucial. Agora eles estão começando a pensar no que vem depois do ensino médio, o que não é bom. Para gente da idade de Harry e mais velha, pode ser um retrocesso. O tempo cura tudo, e devemos esperar que isso aconteça também nesse caso.

Como você fala com seu filho sobre esses sentimentos? Tive uma conversa com meu filho numa noite dessas, que correu assim: Por causa da pandemia e porque ele está ficando mais velho, eu disse, Harry, sua mãe e eu temos duas responsabilidades. Uma é o manter em segurança. E, se descontarmos aquela vez em que sua mãe o deixou rolar da cama e cair de cabeça, nós o mantivemos seguro. A outra responsabilidade é sua felicidade. E ele respondeu “você andou bebendo?”. É assim que as coisas funcionam na minha casa.

Tradução de Paulo Migliacci

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