Descrição de chapéu Cinema África

Filme 'Cidade Pássaro' faz de São Paulo um personagem na história de imigrantes

Longa nacional estreou pela Netflix no resto do mundo antes de chegar ao Brasil

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São Paulo

Os carros passam velozes pela Radial Leste, sobre a cabeça dos personagens. As calçadas sujas da praça da República acompanham o caminho dos seus pés. À esquerda na tela, surgem os prédios que emolduram o viaduto do Chá. É assim, aos pouquinhos e de modo sutil, que São Paulo vai ocupando os enquadramentos de “Cidade Pássaro”, filme que chega aos cinemas agora.

A presença da cidade se agiganta conforme a história de Amadi se desembaraça. Vindo da Nigéria, o protagonista desbrava a selva de pedra em busca do irmão, que foi morar ali e acabou sumindo do mapa, para fugir das altas e sufocantes expectativas que a família tinha em relação a ele.

Dirigido por Matias Mariani, “Cidade Pássaro” acaba de sair da Mostra de Cinema de São Paulo, meses depois de passar também pelo Festival de Berlim. Segundo o diretor, a cidade é um dos pontos centrais de seu filme, como um personagem mesmo.

Para dar vida a São Paulo, ele e o diretor de fotografia Leo Bittencourt decidiram gravar o longa na proporção quatro por três —mais quadrada, diferente da mais alongada das telas retangulares de cinema—, com o argumento de que, dessa forma, poderiam privilegiar as linhas verticais da capital paulista.

Mas mesmo com o amor que deixa transparecer pela cidade —e de ter nascido nela—, Mariani foi criado no Rio de Janeiro. Foi só por volta dos 16 anos que começou a visitar a cidade quase que semanalmente, fixando, depois, residência nela.

“Eu acho que São Paulo ainda é ‘subconstruída’ enquanto personagem cinematográfico. Eu acho que o Rio e outras cidades brasileiras têm um caráter mais forte no nosso cinema. São Paulo ainda tem muito espaço para de fato se tornar um personagem”, diz o cineasta, por telefone.

É na ponte aérea São Paulo-Rio de sua juventude que Mariani diz estar a semente de “Cidade Pássaro” —“eu tive uma paixão adolescente pela cidade”, ele brinca. Foi ela que o fez descobrir o cinema e o impulsionou a estudar em Nova York. O sentimento de ser um estranho engolido por aquela vida urbana eletrizante, nos Estados Unidos, o motivou a escrever o roteiro para o longa, anos depois.

“Eu juntei essas duas experiências e decidi fazer um filme sobre estrangeiros em São Paulo. Eu convidei a Maíra Bühler para fazer um primeiro tratamento e pesquisa comigo e foi daí que surgiu a ideia de trazer a comunidade igbo para a trama”, diz ele, sobre a corroteirista de “Cidade Pássaro” e sobre o grupo étnico africano ao qual o protagonista Amadi pertence.

Na época, os igbos vinham a São Paulo em grandes números, e Mariani logo identificou ali um enorme potencial para a sua história. Ele e Bühler passaram, então, seis meses dando aulas gratuitas de português para imigrantes, num trabalho que ele define como uma troca. Em seguida, partiu para a Nigéria, onde conheceu parentes de seus alunos, enquanto “Cidade Pássaro” amadurecia.

“Mas eu achei que ainda faltava muita coisa para trazer um pouco da diversidade sobre a qual o filme fala para dentro da sua produção”, diz. Foi então que ele escalou um verdadeiro batalhão para o ajudar em diversos aspectos do roteiro. No total, seis pessoas são creditadas pelo texto.

Não é só São Paulo que tem um laço profundo com “Cidade Pássaro”. A comunidade igbo também tem enorme peso para a trama, tanto que o filme alterna entre o português, o inglês e o próprio idioma igbo. Foi isso que o catapultou internacionalmente, conta Mariani.

Muito antes da estreia na Mostra de Cinema, no mês passado, o filme já estava disponível em cerca de 190 países. Uma divisão africana da Netflix comprou seus direitos para exibição mundial, como uma estratégia não de promover o cinema brasileiro, e sim a cultura nigeriana por meio da plataforma de streaming.

“Foi uma montanha-russa de emoções, porque a gente ficou superfeliz de apresentar o filme em Berlim, mas logo na sequência começou a quarentena e os festivais dos quais a gente ia participar foram cancelados. Eu me preocupei de o filme cair no esquecimento”, afirma.

“Mas logo depois a gente recebeu essa proposta surpreendente, de ter o filme disponível para todo o mundo. E eu fiquei honrado por essa divisão da Netflix na África considerar o filme passível de ser comprado por esse motivo. E foi incrível, porque eu comecei a receber mensagens do mundo inteiro, de pessoas que foram tocadas pelo filme.”

Por causa de normas da Ancine, que exige que as obras que usam recursos públicos sejam exibidas nas salas de cinema brasileiras, “Cidade Pássaro” voou para todos os territórios nos quais a Netflix está presente, com exceção do Brasil.

Ele agora espera que o alcance e a visibilidade do filme façam com que as pessoas repensem o papel da imigração no Brasil e, mais especificamente, na capital paulista.

“Eu acho que São Paulo tem uma origem muito parecida com cidades como Nova York, por ser um grande polo de atração de imigrantes e nesse sentido de ter sido formada por estrangeiros. A gente ouve isso na escola, na rua, no botequim, mas de uma maneira como se a gente estivesse preso no passado, diferente do que acontece em Nova York”, afirma.

“Os paulistas foram formados por essa imigração, como se isso não fosse um processo ainda atual —o que é uma mentira. São Paulo continua recebendo muitos imigrantes, seja do Brasil, da América Latina ou de outros lugares do mundo. Então por trás de ‘Cidade Pássaro’ existe um desejo político de iluminar esse processo de imigração, de mostrar que São Paulo continua sendo construída por imigrantes."

Cidade Pássaro

  • Quando Estreia nesta quinta (19)
  • Classificação 12 anos
  • Elenco O.C. Ukeje, Chukwudi Iwuji e Indira Nascimento
  • Produção Brasil/França, 2020
  • Direção Matias Mariani
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