Descrição de chapéu Livros África

Jorge Ben e impacto de sua guitarra elétrica dominam livro sobre 'África Brasil'

Disco é tema de obra que explica como o artista mudou a maneira de retratar a mulher negra no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Expor detalhes da vida pessoal a jornalistas, ou até mesmo a amigos íntimos, não parece ser o tipo de atividade que interessa muito a Jorge Ben Jor, pelo contrário. Mesmo tendo influenciado de modo direto alguns dos maiores movimentos culturais do Brasil, sobretudo o tropicalismo, o artista carioca tem uma vida reservada e rodeada de mistérios, assim como têm aqueles a que ele se dedica a estudar e a retratar em muitas de suas canções –os alquimistas.

A quantidade de entrevistas dadas pelo músico é até bem baixa se comparada a de outros artistas brasileiros com níveis de fama semelhantes. Não é tão simples o convencer a falar sobre sua vida. No entanto, a jornalista Kamille Viola, que pesquisa sobre o músico há mais de uma década, o entrevistou na pandemia para escrever “África Brasil: Um Dia Jorge Ben Voou para Toda a Gente Ver”, livro recém-lançado pela coleção “Discos da Música Brasileira”, do Sesc.

A obra traz a história do álbum “África Brasil”, de 1976, um marco tanto na carreira de Jorge quanto na música brasileira. A autora narra alguns dos principais momentos do músico e traz entrevistas com pesquisadores, artistas e até mesmo craques do futebol. Nomes como Zico, Mano Brown, Gilberto Gil, Marcelo D2, BNegão, Gustavo Schroeter, Lúcio Maia, Jorge Du Peixe e Dadi comentam no livro a importância do artista e do disco no país.

Ao lado de “A Tábua de Esmeralda”, de 1974, e “Solta o Pavão”, de 1975, “África Brasil” faz parte da tríade mística do artista, conhecida por retratar o universo da alquimia, uma de suas grandes paixões. A obra é também o seu 14º álbum, vendeu cerca de 60 mil cópias quando lançada e aparece em “1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer”, de Robert Dimery. Mas não é exatamente nenhuma dessas características que torna “África Brasil” um clássico da música brasileira.

É neste álbum que Jorge dá adeus ao violão para assumir de vez a guitarra elétrica, instrumento que, aliás, foi alvo de protestos na década anterior. Logo na primeira faixa, “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)” é possível notar o som rasgado da guitarra acompanhado pelo batuque do samba e por fortes influências do soul e do funk dos Estados Unidos da época.

Trazendo uma sonoridade única com cuíca, tambores, instrumentos de percussão cubana e de sopro —além do som eletrificado da guitarra, é claro—, o disco passa por assuntos como futebol, amor, Idade Média, alquimia, diáspora africana, negritude e infância. Viola define a obra como “um bom panorama dos temas mais recorrentes do universo jorgebeniano”.

É em “África Brasil” que o artista aumenta sua fama de diversidade musical e talento promissor, que já vinha há anos ganhando destaque. No livro, a autora mostra que Chris Blackwell, fundador da gravadora Island Records —responsável por revelar Bob Marley ao mundo com o disco “Catch a Fire”—, tentou na década de 1970 fazer de Jorge uma grande revelação mundial, mas só não teve o desejo totalmente concretizado porque o próprio artista não demonstrou tanto interesse.

O disco “África Brasil” é ainda um dos precursores do cantar falado, que viria futuramente a ser muito usado pelo rap brasileiro, e uma ruptura da ideia de democracia racial no país.

Embora Jorge já tenha sido diversas vezes definido como “um músico alienado” por artistas e críticos musicais, o livro mostra que grande parte de sua obra é inteiramente voltada a exaltar a identidade negra e povos africanos. A última faixa de “África Brasil” traz uma versão de “Zumbi” —com uma letra cheia de referências ao período escravocrata brasileiro— marcada por um vocal raivoso que chega a quase convocar os negros a se unirem para uma revanche.

São muitas as canções em que o músico faz referências explícitas à beleza negra, à diáspora africana, à África —sobretudo mulçumana— e a suas musas negras, das quais a mais famosa é, sem dúvida, Tereza. Mas mesmo assim, há quem o critique pela ausência de um embate mais direto.

Segundo Viola, essa percepção não passa de racismo. “Muitas vezes as pessoas são racistas até quando o tentam elogiar”, diz ela. “Falam que ele é um gênio e nasceu com um dom divino. E excluem, assim, toda a intelectualidade por trás de suas obras.”

Mulher segura vinil
Kamille Viola segura vinil "África Brasil", de Jorge Ben - Daniela Dacorso

“Até hoje há quem o considere despolitizado, é um absurdo. Precisamos reconhecer que ele sempre tocou na questão racial. Foi ele, aliás, quem parou de retratar a mulher negra como um objeto sexual, e a mostrou como alguém digno de ser amado. Isso é bem revolucionário. Ele ajudou a construir um imaginário positivo sobre o negro no Brasil.”

O músico, filho de mãe instrumentista e pai compositor e ritmista, teve contato com o universo artístico logo cedo. Quando criança já tocava surdo no Cometas do Bispo, banda que seu pai integrava, e participava de eventos na Salgueiro. Aos 13 anos, aprendeu a tocar pandeiro. E, na adolescência, ingressou num seminário católico, onde teve contato com a música sacra e aulas de canto, órgão e piano.

Foi revirando informações sobre o seu passado que Viola encontrou alguns enigmas que reforçam a onda misteriosa por trás de um dos maiores nomes da música brasileira. Um deles é a idade de Jorge. Atualmente, ele afirma ter nascido no dia 22 de março de 1945, contudo em 1963 ele dizia ter 21 anos —assim, teria que ter nascido em 1942. Mas a autora do livro encontrou sua provável certidão de nascimento e a data registrada é 22 de março de 1939, ou seja, ele teria hoje 81 anos.

A questão da idade parece ser muito relevante para o artista, que já chegou até a brigar com Tim Maia, que era um de seus amigos mais próximos, depois de saber que o músico fez piadas com o assunto no antigo programa de Jô Soares, da TV Globo.

Viola narra também os bastidores das principais polêmicas nas quais o carioca se envolveu, como o processo que levou pela música “Filho Maravilha” —na época, com o nome “Fio Maravilha"— com uma letra homenageia o então jogador de futebol João Batista de Sales, e as coincidências entre “Da Ya Think I’m Sexy?”, de Rod Stewart, e “Taj Mahal”, que geraram uma série de discussões sobre plágio musical.

O livro traça ainda semelhanças entre Jorge e o período medieval, principalmente pela sua relação artística com o trovadorismo. Vocais dramáticos —com melismas árabes—, letras de amor platônico —muitas vezes, por uma musa inatingível— alquimia, príncipes, princesas, reis, rainhas e guerreiros —geralmente, todos negros— são destaques na obra do músico.

“O Mano Brown me disse que quando ouvia Jorge na juventude sonhava com tudo, desde Nova York até a Idade Média, enquanto estava no Capão Redondo”, disse a autora. “É isso que o Jorge faz. Ele deixa as pessoas sonharem. E, no livro, tentei mostrar sua importância para os negros, a arte e o Brasil.”

África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.