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Livro de Nélida Piñon não é olhar para passado, mas olhar do passado

Primeiro romance da autora em mais de 15 anos aborda o decantamento da glória de Portugal

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Um Dia Chegarei a Sagres

  • Preço R$ 62,90 (512 págs.)
  • Autoria Nélida Piñon
  • Editora Record

“Nasci no século 19, no norte de Portugal, e não sei o que significa ser parte desta nação”, começa Mateus, narrador de “Um Dia Chegarei a Sagres”.

Há mais de 15 anos sem publicar um romance inédito, Nélida Piñon retorna com este épico de 500 páginas que apresenta os passos inseguros de um homem abalado pelo luto e pela falta de perspectivas. Os capítulos, bem conduzidos, vão e voltam no tempo, revelando lembranças e ponderações de Mateus.

Com a morte do querido avô Vicente, Mateus decide abandonar a remota aldeia natal e cruzar o país até chegar a Sagres, na região do Algarve, no sul. Ali viveu o infante dom Henrique, conhecido como o Navegador, cujo rastro ele planeja seguir.

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A escritora Nélida Piñon ao receber o prêmio Príncipe das Astúrias de Letras, em Madri, em 2005 - AFP

Na devoção ao infante, o narrador é inspirado por Vasco da Gama —um carismático professor da aldeia que, embora idolatrasse as grandes figuras da história do país, “acusava Portugal de maltratar seu povo, de levá-lo quase a mendigar”. Também Mateus vê Portugal como “uma terra que outrora tivera grandeza e a perdeu”, de modo que “recaíra sobre os pobres o peso das desgraças”.

Ora o narrador deplora o colonialismo, ora se ufana das conquistas lusas. Já em Sagres, Mateus “via refletido na superfície das águas crispadas o próprio d. Henrique a escrutinar o horizonte como a acenar às naus portuguesas, portadoras de ouro e de vitórias”.

Mateus também é devoto de Camões. “Ao lado do Infante”, diz, “ele é a pátria portuguesa".

Embora seja de origem humilde, a educação livresca é oferecida a ele sobretudo pelo alfarrabista Ambrósio, com quem vive ao chegar a Sagres. Nuno, o taberneiro que dá emprego a ele, proporciona outro tipo de instrução, mais mundana.

O romance ganha novo fôlego da metade para o final, quando o narrador enfim chega a Sagres. Além de Ambrósio e Nuno, entram em cena a idealizada Leocádia, uma jovem cadeirante vigiada de perto pela superprotetora tia Matilde, e Akin, chamado de “o Africano”, por quem Mateus sente uma atração inconfessada.

Não se trata de um olhar para o passado, mas de um olhar do passado. Ao próprio narrador, cuja voz nos chegaria do século 19, é atribuída uma espécie de anacronismo. “Descobri com o tempo que me faltou ao menos uma certa modernidade”, diz Mateus. “Desde o nascimento”, completa, “fui um homem antigo, integrado a séculos ultrapassados".

No fundo, o que Mateus persegue é a ilusão da glória do passado —que para ele é mais coletiva do que pessoal. Sonha em ser acolhido no forte de Sagres pelo próprio infante, que o conduziria “aos primórdios da sua saga”, ao “magno enredo português”.

Num narrador combalido, portanto, o ufanismo anda lado a lado com a consciência dos vários tipos de exploração e opressão. Mateus sabe que a motivação de seu périplo a Sagres —condensada num monarca que morreu em 1460 e em tudo o que ele representa— é uma quimera, mero disfarce para outras necessidades a que raramente dá nome.

No final, já velho, Mateus se mostra mais disposto a enxergar as fundações sobre as quais se assentou a decantada glória portuguesa. É então que o ufanismo arrefece, quando se dá conta de que o infante “incluíra escravos negros entre suas propriedades, trafegara com este comércio vil, havendo sido quase o primeiro a fazê-lo em Portugal”.

Por isso o narrador nunca chega de fato a Sagres. Se em certo sentido a Sagres de Mateus pertence ao passado, em outro ela nunca existiu. Na falta da grandeza épica tal como elaborada pelos poetas, sobretudo por Camões, resta a Mateus buscar, e talvez encontrar, algo parecido com o amor.

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