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Michel Laub dispensa sutileza para narrar um Brasil mais óbvio

Repetições em 'Solução de Dois Estados' aparecem como discurso que se esvazia diante do que nunca mudará

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Adriano Schwartz

Professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de 'O Abismo Invertido'

Solução de Dois Estados

  • Preço R$ 49,90 (248 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Michel Laub
  • Editora Companhia das Letras

O aviso vem ao final do livro. É quase sempre o mesmo, mas de vez em quando algo muda. Aqui, algo mudou. Ele começa como sempre —“os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção”. Mas termina diferente —“algumas passagens foram tiradas de textos e vídeos reais, que o autor distorceu para efeitos de ficção”.

Na hora em que encontra o tal aviso, o leitor terminou “Solução de Dois Estados”, de Michel Laub, e aí talvez dê um sorriso irônico, o primeiro depois de mais de 200 páginas. Afinal é difícil imaginar algo mais distorcido do que o “real” no Brasil neste 2020.

laub em livraria
O escritor Michel Laub - Zé Carlos Barretta/Folhapress

Para contar a história das desavenças dos irmãos que se detestam, Alexandre e Raquel, a chave escolhida não é a da sutileza. “O mundo está mais óbvio, o Brasil está mais óbvio, então é preciso falar disso tudo de modo mais óbvio.”

Muitas palavras desse “real” estão por ali, espalhadas —assassinato, espancamento, deputado, banco, patrocínio, milícia, pastor, pornografia, arte, culpa, desculpa, ódio, cura, miséria. Como diz a certo ponto Raquel, “no fundo, as coisas são o que parecem”.

O título do romance, com sua alusão a um plano de paz que nunca veio, é também o nome do projeto da personagem cineasta Brenda Richter, um “decálogo documental sobre intolerância” que já tivera partes gravadas na Síria, na Hungria e na Venezuela.

E o livro que lemos é uma coleção de pedaços não prontos do segmento brasileiro desse documentário. Em partes que se intercalam e escancaram tudo que há de provisório, precário e urgente ali, surgem nas seções “material pré-editado” e “material bruto” as vozes de Brenda, Alexandre e, principalmente, Raquel, em 2018. Há ainda pequenos depoimentos, trechos de filmes e livros, comentários de internautas, panfletos, notícias em “extras/material a inserir”.

Não se trata de uma ficção que se aproxime do discurso jornalístico —tão frequente por aqui por tanto tempo— ou que faça com que ele imploda, como no notável “O Monstro”, de Sérgio Sant’Anna.

As repetições, reiterações e pequenas revelações usuais nos textos de Laub reaparecem nesta “Solução” como impasse, como discurso que se esvazia diante do que aparentemente nunca mudará.

“Se você nunca mais me procurar depois de hoje, não faz diferença. Amanhã eu dou outra entrevista. Como dei tantas antes e vou continuar dando”, diz a artista de renome internacional Raquel, uma mulher gorda que não aceita o próprio corpo e faz performances sexuais em que é agredida e humilhada.

“Você está cansada, Brenda, mas eu não estou cansado. Eu posso ficar até amanhã aqui. Posso fazer quantas sessões de entrevista você quiser”, diz, em outro momento, o irmão, empresário do “ramo fitness” —e, como nos informa um trecho de reportagem de janeiro de 2020 de uma revista alemã da seção “extras/material a inserir”, agora um deputado federal que resolve entrar “com uma ação na Justiça de São Paulo para impedir o uso de sua imagem”.

Esse é o oitavo romance de Michel Laub. É um autor com uma trajetória consistente, com vários pontos
altos e um ou outro problemático. Se no livro anterior, “O Tribunal da Quinta-Feira”, ele força um pouco a mão, aqui a aposta é certeira.

“Solução de Dois Estados” não resolve nada, não nos consola, não nos diverte. Ainda assim, esse “efeito de ficção” faz todo o sentido.

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