Descrição de chapéu The New York Times

Monólito no deserto de Utah pode ser obra surpresa de escultor minimalista

Objeto misterioso que sumiu depois de encontrado é atribuído a John McCracken por seu galerista

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Deborah Solomon
The New York Times

No começo, a história parecia uma reviravolta na trama de um romance de ficção científica de Philip K. Dick. Uma coluna prateada e de aparência metálica, com cerca de três metros de altura e um ar de estranheza, foi avistada em meio aos cânions de rocha vermelha do deserto estado americano de Utah.

Funcionários do governo estadual encontraram o objeto quando estavam avaliando as terras como habitat de carneiros monteses e dizem que não fazem ideia de quem fincou a coluna no solo rochoso. E, desde a descoberta, o mistério sobre quem produziu a coluna e como ela chegou àquele lugar vem se provando irresistível.

Há quem escolha imaginar, jocosamente, que ela foi plantada lá por alienígenas. Outros acreditam que seja um tributo ao monólito de “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Mas a especulação mais fascinante é de que o objeto talvez seja uma peça do escultor John McCracken, um artista minimalista que tinha afinidade por ficção científica e morreu em 2011.

Monólito encontrado no deserto de Utah - Departamento de Segurança Pública de Utah -18.nov.2020/NYT

A galeria David Zwirner, que exibe o trabalho do artista desde 1997 e representa seu espólio, afirmou que o misterioso monólito é com certeza trabalho de McCracken.

Só há um problema: se esse for mesmo o caso, McCracken realizou a façanha sem dizer uma palavra a respeito ao seu marchand ou aos seus amigos. E agora o mundo da arte está dividido sobre se a história é plausível ou não passa de uma peça pregada por alguém.

Patrick McCracken, o filho do artista, continua intrigado com o monólito. Mas, quando ouviu falar dele, se recordou de uma noite em maio de 2002, quando seu pai morava em Medanales, no estado americano de Novo México, em uma pequena casa de adobe no topo de uma encosta.

“Estávamos fora da casa, olhando as estrelas, e ele disse alguma coisa sobre uma ideia de deixar uma obra de arte em algum lugar remoto para ser descoberta mais tarde”, recordou Patrick McCracken, em entrevista por telefone.

Ele achou que seu pai estivesse brincando?

“Não, achei que era o tipo de coisa que ele faria”, respondeu. “A ideia de visitantes alienígenas deixarem objetos que se assemelhavam às suas obras, ou de que suas obras se parecessem com objetos deixados por alienígenas, o inspirava. Essa descoberta de um monólito —isso se enquadra perfeitamente à visão artística dele."

Patrick McCracken, que é fotógrafo e vive em San Francisco, acrescenta que “ele não era o tipo mais comum de pai". "Acreditava em raças alienígenas avançadas e capazes de visitar a Terra. Na cabeça dele, os alienígenas visitam a Terra há muito tempo e não são malévolos. O objetivo deles era ajudar a humanidade a passar por esse período de evolução em que lutamos uns contra os outros.”

John McCracken nasceu em Berkeley, no estado da Califórnia, e era filho de um agricultor; foi um personagem memorável, um homem alto e magro, com o rosto enrugado e olhos que pareciam ter passado tempo demais contemplando o sol.

Leitor ávido de ficção científica, ele acreditava em viagens no tempo e vida extraterrestre. Era amigo do ator Leonard Nimoy, o Spock de “Jornada nas Estrelas”, que colecionava os trabalhos do artista.

McCracken, que morreu de um tumor no cérebro aos 76 anos, é mais conhecido por suas pranchas revestidas de resina reluzente, esculturas geométricas que combinam peças de madeira singelas ao brilho intenso mas superficial da cultura automobilística da Califórnia.

A paixão dele pelos assuntos extraterrestres de forma alguma garante que McCracken seja o autor da escultura, e é possível que ela tenha sido criada por alguém que não é artista.

O conjunto potencial de responsáveis deve incluir pelo menos os milhões de espectadores apaixonados pelo filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, clássico dirigido por Stanley Kubrick em 1968.

O monólito no deserto de Utah - Departamento de Segurança Pública de Utah -24.nov.2020/AFP

O filme traz um monólito como peça central da trama, uma estrutura negra reluzente que atravessa eras evolutivas incólume. Quando macacos encontram o monólito e veem as linhas e ângulos retos da peça, eles começam a usar ferramentas e a passar pela transformação que resultou em seres inteligentes.

Ed Ruscha, conhecido por suas pinturas com textos inscritos e provavelmente o decano entre os artistas da Califórnia, fez amizade com McCracken nos anos em que este viveu em Los Angeles. “Não acho que seja um John McCracken”, ele disse sobre a escultura.

“Não seria uma atitude dele, a de pregar uma peça em alguém. Um monólito no deserto? É tão universal que poderia ser trabalho de qualquer um. Encontrar algo assim tem muito a ver com a ficção científica. Gosto da ideia de que alguém o fez para se divertir.”

O artista James Hayward, muito amigo e ex-assistente de McCracken, concorda. “É uma gigantesca trapaça, até onde sei”, ele disse.

“O objeto nas fotos que vi foi produzido de maneira crua. Estudei os cantos, da melhor maneira que pude; eles são feitos com uma máquina chamada freio, que dobra metais. Quando você dobra metal com uma máquina, os cantos não são aguçados e bem definidos. Eles são arredondados."

Comparado a um minimalista clássico como Donald Judd, McCracken era uma anomalia, em parte por resistir ao uso de máquinas e à produção industrial. Ele preferia fazer suas esculturas à mão, em um espírito artesanal de trabalho cuidadoso e paciente. A peça encontrada em Utah difere das pranchas que ele lançou a partir de 1966 e sobre as quais continuou a pensar até o fim de sua vida.

Elas consistem em placas retangulares de compensado revestidas de fibra de vidro, pintadas de uma cor só e apoiadas contra uma parede, como se um marceneiro as tivesse encostado durante a produção, por exemplo, de uma cama.

Produzidas em cores fortes e saturadas, como rosa goma de mascar, amarelo girassol e preto piano, elas emprestam cor a uma vida material independente. Mas o polimento intenso de suas superfícies as torna tão reflexivas que parecem se dissolver diante dos olhos do observador, tornadas menos massa escultural do que pura metáfora platônica.

McCracken gostava de dizer que as pranchas ocupavam um território entre a pintura e a escultura. Com uma extremidade apoiada ao chão e a outra tocando a parede, uma prancha conecta a terra aos nossos pés e o reino mais elevado da parede, a superfície na qual a pintura, e assim a ilusão, começam.

Mas a carreira de McCracken envolvia mais do que pranchas. O monólito do Utah, uma coluna vertical feita de alguma coisa que não madeira, é compatível com trabalhos menos conhecidos de McCracken em aço inoxidável, para os quais ele usava diversos fornecedores, entre as quais a Arnold AG. “Nós o apresentamos a essa incrível empresa, que costuma trabalhar com Jeff Koons”, disse Zwirner sobre a companhia metalúrgica alemã.

Zwirner admite que demorou a descobrir o trabalho de McCracken. Em 1992, ele estava visitando o artista Mike Kelley em sua casa em Los Angeles e viu um pedestal rosado na sala de estar do artista. O marchand perguntou de quem era a peça, e Mike respondeu que ele deveria ser “o maior panaca do planeta". "Você não conhece John McCracken? Ele é um dos maiores artistas vivos”, Kelley teria dito.

Zwirner conta que "levei a maior bronca por não conhecer McCracken”.

Meses depois, o marchand começou a buscar esculturas do artista, e telefonou para perguntar se ele era representado por uma galeria em Nova York. McCracken hesitou para responder. “David, na verdade não sei.”

McCracken era representado pela prestigiosa galeria Sonnabend desde 1970, mas aparentemente estava se sentindo desconsolado sobre a situação de sua carreira. Ainda que tenha conquistado fama com uma mostra no Jewish Museum em 1966, “Primary Structures”, que ajudou a lançar o movimento minimalista, o ímpeto inicial de McCracken havia desaparecido.

Ele assinou com Zwirner e realizou sua primeira mostra na galeria dele em 1997. McCracken manteve sua posição como um minimalista respeitado, se bem que idiossincrático. Sua décima mostra na galeria acontecerá em março, e Zwirner decidiu dedicar a mostra às pranchas, que ele diz jamais terem sido expostas em conjunto antes.

Em conversa via Zoom com Zwirner e Hanna Schouwink, uma sócia da galeria que trabalhou em estreito contato com McCracken ao longo dos anos, fica claro que o desacordo sobre a autoria do monólito se estende até à equipe da empresa.

Schouwink não está convencida de que a peça seja de McCracken (“eu na verdade não sei mais”, ela disse com um suspiro). Mas Zwirner afirma, com toda a confiança, que “é claro que a peça é de McCracken". "Ele voltou para nos ajudar na transição”, acrescentou, em referência aos acontecimentos recentes em Washington.

(Poucos dias antes, um porta-voz da galeria foi citado na imprensa como tendo declarado que a peça não era trabalho de McCracken, mas que era provável que fosse uma tocante homenagem a ele, produzida em seu estilo por um acólito desconhecido.)

Alguns investigadores trabalhando online, usando o Google Earth a fim de determinar quando a escultura surgiu no deserto, afirmam que ela foi instalada em 2016, bem depois da morte de McCracken.

Como provar que um pedaço de metal no deserto é na verdade um trabalho de McCracken? Em questões de autenticação de arte, opiniões estéticas instintivas e o poder do olhar são considerados relevantes —pouco importa que ninguém tenha visto a peça em pessoa exceto aqueles funcionários do governo de Utah.

Uma forma mais relevante e confiável de autenticação precisa esperar a coleta de informações sobre a instalação da escultura. Seria útil saber quem exatamente transportou o objeto de metal ao deserto, perfurou a rocha vermelha para o plantar no chão e talvez tenha preparado uma fundação de cimento sob ele. Se você por acaso é a pessoa que fez isso, bem, por favor, se pronuncie.

Zwirner admite não saber quem instalou a escultura e não parece preocupado com a questão. E talvez não surpreenda que, agora, perto do final deste ano empesteado, quando tanta gente se viu afligida por graus variados de isolamento e doença e se viu como que anestesiada diante de tantos noticiários pessimistas na televisão, contemplar uma bela aparição surgida do solo do deserto tenha efeito calmante, como uma afirmação comovente do triunfo da imaginação sobre a banal realidade cotidiana.

Mas cuidado. Como Spock famosamente advertiu, “fatos insuficientes são um convite ao perigo”.

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.