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Negra que se passa por branca move as tensões do romance 'Identidade'

Um dos conflitos do livro de Nella Larsen se dá porque personagem mente em época de veto a casamento interracial

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Stephanie Borges

Poeta, tradutora e jornalista, é autora de “Talvez Precisemos de um Nome para Isso”. Apresenta o podcast Benzina.

Identidade

  • Preço R$ 39,90 (160 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Nella Larsen
  • Editora HarperCollins Brasil
  • Tradução Rogério W. Galindo

Duas mulheres de classe média alta tomam drinques na cobertura de um hotel. Trocam olhares até se reconhecerem. O encontro de Clare Kendry e Irene Redfield seria banal se não acontecesse em 1927, quando a segregação racial era lei nos Estados Unidos.

Elas só podiam estar naquele espaço porque a pele clara, seus cabelos, seus traços e suas roupas permitiam a elas ser lidas socialmente como brancas.

Clare e Irene são mestiças e foram criadas num bairro negro e pobre de Chicago. A primeira fica órfã, vai morar com duas tias e se afasta da vizinhança onde cresceu. Clare se envolve e se casa com John Bellew, um homem branco racista, e decide não contar suas origens a ele. Irene se casa com Brian, um médico negro. O casal tem dois filhos e se muda para o Harlem, em Nova York.

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A escritora americana Nella Larsen - Divulgação

É provável que leitores brasileiros estranhem que um dos principais conflitos do romance se dê porque Clare finge ser branca. No entanto, vale lembrar que em 1929, quando "Identidade" foi lançado, os casamentos interraciais eram proibidos e a regra de “uma gota de sangue” definia a identidade racial das pessoas nos Estados Unidos. Portanto, pessoas com bisavós negros, pele clara e traços brancos eram consideradas negras.

A estratégia de se passar por branco se popularizou no país a ponto de se tornar central num dos principais livros produzidos durante a Renascença do Harlem, movimento cultural negro nos anos 1920, que influenciou especialmente a literatura e a música, do qual fizeram parte escritores como Zora Neale Hurston, W. E. B. Du Bois e Langston Hughes.

A autora Nella Larsen é uma influência para escritoras como Alice Walker e bell hooks, que escreve seu nome em minúsculas, por abordar a subjetividade das mulheres negras mostrando diferentes modos de viver, desejos e ambições, sem emitir julgamentos moralistas, mas sem esquecer das violências físicas e psicológicas existentes nas sociedades racistas.

Acompanhamos a história do ponto de vista de Irene, que apesar da vida confortável, empregados, do status social entre os negros abastados de Nova York é frustrada, controladora e vive numa tensão constante por ter feito seu marido desistir do sonho de se mudar para o Brasil.

O pouco que sabemos sobre Clare são as impressões de Irene, que se sente atraída pela amiga, numa mistura de tensão sexual, vontade de agradar, inveja e ciúmes.

Entretanto, essa não é uma história de rivalidade feminina, mas de uma relação complexa entre duas mulheres que tentam construir vidas diferentes de suas origens humildes, e conseguem, mas isso não traz felicidade a elas. Em breves diálogos, Larsen faz críticas afiadas à maternidade e às expectativas sociais de que mulheres se contentassem só em cuidar de seus filhos e maridos.

Irene é contraditória. Ela critica Clare por enganar John e não contar à filha, Margery, sobre as suas origens. No entanto, ela discute com Brian por conversar com os próprios filhos sobre racismo e violência.

Preocupada com as opiniões alheias e empenhada em se tornar exemplo de uma nova imagem de pessoas negras bem-educadas, inteligentes e refinadas, Irene vive de aparências e sem perceber o que ela e Clare têm em comum, o fingimento constante. Uma mente para sociedade, a outra para si mesma.

Entre as maiores qualidades de "Identidade" estão a maneira como a autora articula com simplicidade os desafios e decepções de mulheres negras —tentando corresponder a uma imagem de feminilidade que traz limitações e frustrações— e como o romance trabalha o não dito, deixando espaços propositais para os leitores tirarem suas conclusões.

O final em aberto pode parecer impreciso, mas mostra como a memória é uma construção afetada pelos sentimentos. Evoca o poder do ato de narrar como uma maneira de dar sentido aos acontecimentos, aos nossos atos e também a quem nos tornamos.

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